domingo, 4 de dezembro de 2011

O Copo.

O bebedouro e o copo. (Ilustração: Yhuri Cruz )
Disseram-me que logo ali, subindo a rampa, virando a direita, eu encontraria um bebedouro. Descoberta a fonte, aproximei-me do grande objeto retangular, curvei lentamente minha coluna e com certa ansiedade apertei o seu dispositivo, aquele que faz a água jorrar, como num chafariz em miniatura. A água, cumprindo seu papel, chegou com calma, com mais calma do que eu esperava, demasiadamente lenta, como praia na maré baixa.

Em cima do bebedouro havia um pequeno copo plástico, deixado ali por um certo alguém, que provavelmente não crê na higiene de um aparelho que tem em sua natureza a necessidade da aproximação da boca para a tomada do gole d'água. Imagine: várias bocas que já ocuparam o mesmo espaço em tempos distintos.

Pressionado o botão, o bebedouro foi acionado. A lenta corrente de água saltou e fez o copo plástico boiar. A depressão do bebedouro se enchia do líquido transparente e o copo flutuava feliz, de um lado ao outro, sem ânsia de chegar, consciente de que não encontraria obstáculo, só acompanhando a maré que eu criava para aquela maquete de mar.

Eu levei meus lábios até a corrente d'água que refrescava minha garganta com maestria. Enquanto bebia, olhei para o lado e vi um barco tomando o lugar do copo. Uma pequena canoa branca, real, dessas para pescadores navegava naquele pequeno espaço quadrado. A canoa-copo vinha em minha direção. Minha boca se enchia da minha própria maré, mas as pequenas gotas travessas que fugiam do sugar, traziam o mínimo barco navegante a mim.

A sede cessou, mas eu não me permitia parar de gerar ondas para aquele copo navegar. Não me dei conta que algumas pessoas me observavam de longe. Um homem encarando um bebedouro, desperdiçando água alheia, fazendo o copo se movimentar. É o que eles pensavam, imagino. Não se davam conta da canoa, de sua existência ilusória. Não era desperdício.

Meus dedos continuavam a jorrar. Até que finalmente uma mulher de uniforme nublado e voz severa veio me chamar atenção. Aí então, a mulher me deu um puxão e o fluxo de água parou num solavanco trovejante (KAABUM!). Olhei-a desconcertado e em seguida reparei que o copo havia tombado, flutuando de lado no resto das águas, que desaguavam para dentro do bebedouro.

Procurei não olhar ao meu redor, e saí depressa dali. Com o copo nas mãos, a passos largos, o avião monomotor flutuava sob o corrimão da rampa.
*

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Quelqu'un m'a dit.

"Disseram-me que o destino debocha de nós; que não nos dá nada e nos promete tudo". (Quelqu'un m'a dit - Carla Bruni)

Quelqu'un m'a dit. (Ilustração: Yhuri Cruz)


































sábado, 26 de novembro de 2011

Retrato vazado.

Retrato Vazado. (Ilustração: Yhuri Cruz)
 
Durante as quatro principais horas que compõem as manhãs, exceto naquelas de chuva, são libertos os indivíduos de sua mansão branca e gélida. No pátio, eles tem o direito de aproveitarem do céu e de pisar na grama com toda a força. Uns aqui e outros ali. São pequenos pirocópteros fora de rota.

- Eu bem te desenhei num outro dia.
- Sério? Cadê? Você está com ele aí?
- Com o desenho? Estou sim. (Pega o caderno e mostra o desenho).

- (...)
- Então, gostou?
- Gostei sim. Bastante. É que eu estou tão bonita que nem me reconheço.
- Mas todos reconheceram você assim que puseram os olhos nos seus traços. Eu empresto o caderno, as pessoas passam as páginas devagar, às vezes nem prestam a devida atenção (não que eu ligue), e chegando nessa aí falam logo: não é a Cecília? E eu sempre rio e confirmo que é você.

- (..) mas o meu nome nem é Cecília.
- Como assim? Eu sempre pensei que você se chamasse Cecília.
- Não.
- Caramba, que vergonha. Desculpa, mas, então, qual é o seu nome?
- Meu nome é Marta.
- Nossa, Marta, me desculpa. Me sinto tão envergonhado. (Pega o caderno de volta).

Do outro lado do pátio, alguém grita: Cecília, vem aqui!

- Vivem confundindo o meu nome. Me sinto triste porque penso que não sou uma pessoa que deixa sua marca no mundo, sabe? A primeira coisa que você faz quando encontra um novo alguém é se apresentar, é falar quem você é. É nessa hora, quando você fala o seu nome, que é dado o primeiro passo da intimidade. O nome é a nossa identidade nesse mundo. Mas vivem me confundindo, eu fico realmente triste. Eu sinto falta da intimidade.
- Não fica assim. As pessoas esquecem porque... porque o mundo é muito complicado.

- É verdade. Muito complicado. Outro dia eu juro que minha mãe me perguntou: 'você ama seu irmão?' E eu fiquei muda, sem saber o que falar. Meu irmão já morreu. Por que aquela conversa naquele momento, sabe? O mundo é mesmo muito complexo. 
- Nossa, seu irmão morreu mesmo? Meus pêsames.
- Não tem problema, foi no parto.

O homem de roupas claras que gritara agora há pouco, repete: Vem, Cecília! Vem!

- (...).
- Não se incomode tanto. Vai lá e fale que seu nome é Marta, oras! Você tem que fazer com que as pessoas pensem que essa menina linda que eu desenhei é a Marta e não a Cecília!
- Mas... Essa menina que você desenhou sou eu, certo? Ainda que seja muito bonita (eu nem sou tanto), mas ela sou eu, né? 
- Claro que é você, boba! E você é linda. 
- Mas se sou eu, então não é Marta.
- Como assim? "(...) não é Marta"?
- Desenhista, meu nome é Alice. Não é Marta..


- Alice? Seu nome não é Marta?
- Não.
- Nem Cecília?
- Meu nome é Alice Bragança Santos.

O homem de branco chegou apressado, carregava uma pesada respiração nos pulmões e parecia ter feito algum esforço físico.

- Cecília, sua mãe e seu irmão estão aí para te ver. Acabaram de chegar. Vamos vê-los?

O desenhista encarou o homem ofegante e Alice (ou Marta ou Cecília ou Amanda?). Subitamente, a mulher começava a derramar lágrimas e mais lágrimas. Sua expressão era de dor e pena. Ela não existia para qualquer ser humano. Era uma pessoa sem nome. Chamava-se ______. Aproximou-se rapidamente do desenhista e o abraçou.

- Ninguém sabe quem eu sou, desenhista. Ninguém.
- Não chore. Sua mãe e seu irmão chegaram. Vá vê-los, não os deixe esperando.
- É, é. Mas meu irmão já morreu. O homem deve ter se confundido.
- Pode ser, mas vai lá, vai. Eu te espero aqui para conversarmos e para que possa te desenhar de novo. 

- Certo - disse, com um sorriso recém-nascido. Mas você sabe meu nome, certo, desenhista?
- Quem precisa de nome, mulher, quando se é tão incrivelmente inspiradora para as artes plásticas! Esqueça a literatura!

A mulher o encarou por alguns longos segundos, seu olhos penetravam nas dúvidas do desenhista que, por sua vez, tinha medo do que responderia à mulher, caso viesse a pergunta X.

- Quem eu sou, desenhista? Me diz, por favor. Qual o meu nome? Qual é a minha identidade? Eu quero ser sua íntima. Como o mundo pode me acolher? Quem poderá me achar se eu me perder? Quem sou eu, desenhista? 
- (...). 
*

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Pietá.

Pietá Pop-art. (Ilustração: Pietá, de Michelangelo + edição online)
Quando sozinha em seu descanso, reflete. Tenta revelar-se o que é agir sinceramente dentro do microuniverso de pessoas com quem convive. Recai sucessivamente em cada momento de seu dia e procura descobrir sua real aparência, sua forma original, inata, de navegar na vida. Temor contínuo da traição. Angústia da auto-traição que acredita cometer contra si mesma em quase todos os momentos da sua vivência. Quantas incertezas tem a respeito do seu eu e o que é o eu quando com o próximo.

Sofre pensando na pobre jornada de um pássaro que não pode voar. Não por não saber bater as asas, mas por estar vivendo, enganosamente, junto a um bando de frangos transgênicos, banhados de hormônio. O pobre pássaro que se junta à granja, que finge apego e euforia, que bica grãos de milho, embora sem familiaridade.

Carrega máscaras dentro dum bolso e um pouco de vodka no outro; já se foi a leveza e a certeza da juventude. Tenta se contentar com o torpor e a umidade que o verão carioca traz no automático. Tornou-se, com os anos, mulher pesada de pudores, de um perfume cansado, de toques indesejáveis e de um medo transgressor da alma.

Espremida entre os próprios braços; na vida, caminha assim: na presença de Adelaide, essa madre, é uma santa; na de Larissa, essa colega, a piranhagem; com Letícia, essa amiga, a frigidez; carinhosa de longa amizade com Lucas; carinhosa de trepada vontade com Arthur; à Valéria, essa vizinha, lhe cabe os dentes amarelos; ao marido, esse franguinho, seu sorriso e só; aos filhos, que nunca teve, o desejo; para o pai, orações de morte ao pó; finalmente à sua mãe, que tanto teme, é Pietá, de Michelangelo.

E no fim do dia, quando sai do canto para preencher a sala vazia, deita-se no sofá e reconhece-se na pobre mulher, Maria, que carrega nos braços, no lugar de Jesus, a sua verdade já desfalecida.

As partículas d'água unem-se numa microscópica gota salgada, que transborda, deixando o olho esquerdo raso novamente, atravessa as bochechas e mergulha na boca rosada entreaberta, que transmite o soar da conformação: a-mém.

*

domingo, 20 de novembro de 2011

Teu Colo.

ai que saudades
daquele amor morena.
que eu me lembro sem pressa
daquele carinho.
a gente costumava sorrir sozinhos
do que nem tem fundamento.
e se encaixava bem no auge
da nossa solidez.

*
nos momentos de agonia
eu ouvia suas súplicas.
prometia estrelas
que brilhavam nos seus olhos.
e as gotas da chuva
que molhavam seu deserto
me faziam transbordar.

*
porque tudo é assim
tão difícil quanto a vida.
e a beleza que um dia se escondeu
desaparece dos cobertores
para banhar-se ao sol.
e a gente aprende
finalmente
que nada é pleno
além do amor ingênuo.

*

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Irritando Valéria.

"Irritando Valéria". (Ilustração: Yhuri Cruz. Quadro ao fundo: Henri Matisse)
Clique e veja em Alta resolução. 
Numa noite de primavera, a mulher de quarenta e poucos anos levantou-se da cama. O quarto estava escuro e suas pequenas mãos, atordoadas e sensíveis. Foi estapeando a parede até achar o pequeno interruptor retangular; manchou o espelho com o óleo natural de suas palmas. Clic. A luz se fez e seus olhos responderam com um reflexo de reclusão dolorida. Andou devagar até o banheiro, encontrou a pia bem a sua frente, lavou o rosto e olhou-se durante alguns segundos no espelho. Sentiu sua pele um tanto escamosa e flácida. Perguntou-se da hora e voltou ao quarto onde dormia há poucos minutos. 20:15, marcava o relógio digital da cômoda ao lado da cama de casal, que se encontrava num estado de revolta, com os travesseiros marcados com crateras arredondadas.

Morena farta, de grandes quadris e sorriso gentil, tinha esse costume aos fins de semana: cismava de dormir o dia todo. Despertava somente para o almoço e para a refeição do fim do dia. Os dois filhos e o pai estavam a sua espera; planejavam comer algo fora de casa e aproveitar o fim do domingo. Algo que pode ser classificado como timing acordou a dona no exato momento de exaltação entre os homens da família. Estavam com fome e iriam acordá-la de qualquer forma. Não foi necessário, é claro.

Valéria era uma pessoa muito gentil. Generosa como poucos, ficava encantada em poder ajudar ao próximo de qualquer forma, sempre ligeira e prática. Quantos pares de chinelinhos já havia distribuído pelas ruas pobres dos bairros da zona oeste do Rio de Janeiro? Certamente uma quantidade tão grande quanto os reais gastos para pagar os variados bicos que inventava para auxiliar os meninos e meninas, jovens e senhoras que estavam na pior. Trabalhos simples. Às vezes ajudá-la na arrumação de um armário, às vezes tomar conta de seus filhos. Mas o dinheiro pago sempre correspondia a mais do que o trabalho pedia. Não se incomodava em gastar, pois seu otimismo era de um nível quase sobrenatural. Tirando o fato de nascer numa família umbandista, suas ambições não tardavam em acontecer, como mágica de fé.

A mulher ouvia os murmúrios de seus homens. Do outro cômodo, seus filhos transmitiam ao pai, com voz de súplica, a fome que sentiam. O chefe, severo, mandava-os esperar mais um pouco.

-Já acordei, filhotes! - gritou a dona, causando alívio geral.

Como a maioria das mulheres antes de sair para qualquer lugar que seja, Valéria organizava mentalmente todas as combinações de roupas que poderia vestir. Foi até a varanda do quarto e analisou as condições climáticas. "Sem saia ou vestido hoje, olha quanto vento!", foi o que pensou quando se decidiu por uma calça jeans. Abriu seu armário sabendo a calça exata que usaria, um jeans escuro, quase negro, com uns botões cor de cobre na ponta dos bolsos e com detalhes inenarráveis nos bolsos traseiros. A jeans e uma bata vinho, com um cordão de pérolas falsas. Tudo se arrumava em sua mente, como um quebra-cabeça de vestimentas. A dona estava feliz por ter decidido tão rapidamente; o mais comum era que levasse um pouco mais de tempo.

A bata jazia esticada sobre a cama, o cordão de pérolas, tão longo que dava duas voltas ao redor do pescoço, permanecia pendurado num cabideiro atrás da porta do banheiro. Valéria resolveu calçar umas sapatilhas pretas, com miúdos detalhes de renda, que comprara na semana anterior. Tudo claro em sua cabeça e seus pés, como um manequim de loja. Só faltava a calça jeans. Fechava uma gaveta enquanto abria sua subsequente, verificava os cabides e abaixava-se para procurar no breu debaixo da cama. A cada canto do quarto que olhava e não obtinha resultados, mais exaltada e espalhafatosa se tornava. Deixou seu aposento e foi procurar no quartinho da empregada, que ficava junto da cozinha. Abriu os dois pequenos armários e conseguiu encontrar uma presilha que vinha dando falta, mas não vislumbrou nem um mísero botão de cobre da sua calça jeans.

- Jorge e José, vejam no guarda roupa de vocês se a Lú não largou nenhuma calça minha aí!

Poucos minutos depois, a casa estava em lamúrias. Todos os cômodos sentiram a presença das mãos da dona Valéria em seus armários, gavetas, baús e estantes. Os tapetes corriam, arrastados pelos corredores com os passos apressados da morena de grandes quadris; o pequeno poodle da família estava atônito como nos dias em que a família viajava e o deixava com os vizinhos; José, o filho mais novo, reclamava baixinho tanto da fome quanto da ocasião de estar procurando "essa maldita calça às 21:30 da noite de domingo!".

- Mais que caralho! - gritava em todos os cantos do apartamento. - Poucas coisas tiram o meu humor, mas quando eu não acho o que eu procuro, isso me tira do sério. Eu fico puta. - disse, realmente puta. - Guardar dentro da sua casa e você não saber onde está! - foi o que pronunciou quase chorando.

O pai e os dois filhos faziam uma varredura de resgate pelo apartamento de 6 cômodos, sem obter nenhum resultado gratificante. A calça havia se perdido. Assim como a noite. Dona Valéria desistira de tudo, se trancou no quarto, chorou baixinho por rápidos minutos, levantou-se, lavou o rosto e saiu para beber um pouco d'água. Ainda estressada, ouve-se da cozinha uma mistura de lamento e reclamação, num tom de fúria: "Eu quero uma água fresca! Mas ou tá tudo quente ou tudo congelado! Mais que merda!". E voltou a se fechar no quarto.

Valéria caiu no sono com os olhos marejados; os filhos e o pai, cansados de procurar a calça, desistiram e se renderam a fritar um hambúrguer de mercado para lancharem com ovo mexido; o poodle ficou efervescente quando percebeu que não haveria viagem alguma.

Quanto à calça jeans com botões de cobre, só restaram hipóteses da sua existência naquela noite.

*

Dois dia depois, numa curta manhã de céu nublado, antes mesmo de acordar, a calça bate à cuca da dona. "Era sonho ou realidade?", foi o que se perguntou ao vir em sua mente a imagem divina de sua calça dobrada perfeita na terceira gaveta de cima para baixo do seu armário. Levanta-se sóbria do sono, dá a volta na cama - o marido, esparramado, parecia gostar do sonho que lhe cabia - e abre calmamente o compartimento que revelou-se em seu sonho como a luz de uma sombra de domingo. Frustração, raiva e tristeza. Nenhuma calça ali. Valéria, conformada, volta para cama e dorme mais alguns minutos antes de levantar-se e ir trabalhar.

O café da manhã estava posto à mesa como costume de todos os dias, exceto aos domingos. Uma harmoniosa mistura de pão, manteiga, queijos e diversos potinhos de doces e biscoitos criavam uma linda cena colorida. Os dois irmãos entram na cozinha, saludam a e voltam para seus quartos com um pão em cada mão, e leite achocolatado na outra.

- Bom dia, Lú. Por acaso você não viu uma calça minha? Era azul escura, quase preta, com uns detalhes brancos no bolso traseiro e uns botões de cobre, linda... Você viu?

-  Ih, dona...

Luciana, mistura de personalidade forte entre Bahia e Rio de Janeiro, apertou os olhos e bateu o pé direito no chão de mármore da cozinha por uns 10 segundos. Saiu da cozinha de súbito, atravessou a sala de estar, o corredor, o banheiro e chegou finalmente ao quarto da dona. O marido brincava com o cãozinho poodle em cima da cama. "Licença, patrão", foi o que disse ao homem, e, com o consentimento calado, adentrou o quarto. Abriu com destreza a segunda gaveta do armário do patrão e retirou dali uma calça dobrada. "Porra, Lú ...", foi o que conseguiu ouvir da voz rouca do homem, que se dava conta do que representava tal peça de roupa. Na cozinha, chega com a calça nos braços, como um bebê.

- Desculpa.. Confundi e coloquei no armário do patrão.

Valéria conteve tanto a exultante pulsão física de alegria e de alívio, quanto a vontade feroz de berrar cabritos aos montes com a empregada. "Ai, que bom..", foi o que sussurrou para si mesma. Pegou a calça nas mãos, cheirou-a rapidamente, rumou ao seu quarto e guardou-a na terceira gaveta de seu armário, como viu no sonho que tivera há pouco.

- Acho que sonhei com o futuro - disse a si mesma, sorrindo de uma orelha a outra, refletindo no quanto a vida é boa quando se tem paciência.
*

sábado, 5 de novembro de 2011

Rodada.

Rodada. 

"Receio do fogo". (Foto: Yhuri Cruz)
Clique e veja em alta resolução.
Menina desconfiada
Tão nova e já gelada.
Com um pé atrás
No sentimento.

Receio do fogo
Rumores do povo
Que o quente derrete
Só sobram os ossos.
"Depois o lamento". (Foto: Yhuri Cruz)
Clique e veja em alta resolução.

Levanta de novo.

Então começa
Mais uma rodada.
Amor renovável
Acende um cigarro
E ama com gozo.

Depois o lamento.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Júbilo, nudez e loucura.

Júbilo, nudez e loucura.
 (Ilustração: Yhuri Cruz. Inspirado em Inez van Lamsweerde and Vinoodh Matadin e Van Gogh)
Mário de Andrade (1893-1945), modernista, em seu conto "O Peru de Natal", escrevera um dos meus personagens favoritos da literatura brasileira:

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada. (Mário de Andrade, Contos Novos, 1947) 

Os considerados loucos tem liberdade poética para desgostar, ofender, discutir, desafiar, arriscar, desobedecer e ignorar. Enquanto os reconhecidos como sãos respiram velados pela boa educação, obediência, semancol, bom senso e ainda são alvos de críticas duras quando agem como impulsivos.

Quisera viver a loucura desde os primeiros segundos da minha existência; não ter chorado quando o doutor estapeou meu recém-nascido traseiro ou, bem mais tarde, ter preferido o futebol às letras. Poderia ter desistido nos primeiros meses de catequese e judiado da maldita moral que não me deixa ceder às minhas paixões mais sanguíneas. Mas essa consciência que me (des)alucina. Mas essa compaixão morna que vulcaniza meus passos. Mas essa condenação irracional que eu me ofereço por cometer atos desgarrados  nos raros momentos de euforia e verdade do meu ser.

Não adianta buscá-la em outros cantos. A felicidade está na loucura e na nudez.

(Clique e leia "O Peru de Natal" completo).
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sábado, 29 de outubro de 2011

As Vozes Previsíveis.

"A luz cega o sempre." Foto: Yhuri Cruz.
As vozes percorriam quilômetros em ligeiros segundos; nenhum ouvido conseguia ouvir, além dos nossos. As mesmas vozes que um dia se calaram para que o amor silenciasse de vez, para sempre. Mas o sempre é tão agora como foi o ontem, é deficiente em sua magnitude. O sempre é o nada e o tudo, é o horizonte de um nascer do sol, desfocado, sem linhas. A luz cega o sempre. A luz. As vozes são tão familiares que o nunca é até possível de ser tocado.

*

- O que você prefere que eu vista amanhã, vestido ou calça? - perguntou a mulher, do outro lado da linha.

- Eu prefiro que você me surpreenda, amanhã - disse o homem, em resposta. Sua mente estava perto de coisas alheias àquela mulher naquele instante.

- Será que eu consigo te surpreender ainda? - ela estava insegura de si mesma. Esperava que ele decidisse e retirasse dela uma das várias preocupações de um reencontro perfeito.

- Ou melhor, eu prefiro você pelada - o homem voltava consciente de si à conversa.

- Eu sabia! Eu tinha certeza que você ia me soltar essa! - exclamou a mulher que ria em graves sons.

- O quão previsível eu posso ser, afinal? - perguntou-lhe. - O quão previsível são os homens, além de tudo! - refraseou.

- Não importa, de qualquer maneira, o quão transparente você seja. O que importa é que o amanhã seja o tempo mais negro de todos os nossos períodos. Que não haja vidente capaz de prever nossas ações ou nossos destinos. Que Deus durma até mais tarde. Que o diabo encontre outros pecadores para atazanar. Porque o que eu quero é que não tenha previsão, esse nosso novo tempo. Inundações virão, meu homem, não tenha dúvidas. Elas sempre vem para os verdadeiros amores, para aqueles que persistem e vão até o findo fim. Que nos engulam, as águas pesadas da angústia! Que nos levem de maré em maré até o tal horizonte que você me falava, daquele do nascer do sol, sem linhas. Que nós possamos ser a linha desse horizonte. Duas pessoas à deriva, boiando, até que a luz nos cegue.

O homem a ouviu respirando após o longo monólogo. Em seguida, o ar é inspirado ruidosamente e ela o questiona:

E eu? O quão previsível sou?
-A mais previsível de todas, minha mulher. Adorável e previsível como uma tragédia shakespeariana.
- Que bom, meu homem, que bom.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Bruno.

Eu não lembro a série em que eu estava quando eu conheci aquele menino. Até porque as séries escolares viraram "anos" e já não sei me localizar no tempo, nas velhas memórias turvas da minha consciência. Apenas lembro que éramos crianças entre 10 e 12 anos e que ele não era um garoto comum. Seu nome era Bruno e ele usava grandes óculos retangulares. Eu não havia reparado na sua existência até ele me sorrir durante um jogo de futebol. As aulas de educação física eram sempre um desgosto, uma jornada no deserto, que eu tinha que percorrer de uma a duas vezes por semana. Eu não tinha capacidade de correr, tinha reflexos duvidosos e a bola era quadrada para meus pés. Naquela tarde, Bruno sorriu por compaixão à minha incapacidade mecânica para driblar um menino que possuía talento para futebol. O óbvio: perdi a bola em 2 segundos. Eu deixei minha cabeça cair, em desânimo, e quando olhei para o lado, lá estava Bruno com seus dentes brancos e tortos, com seus quatro-olhos comprimidos, e com as orelhas estendidas devido ao sorriso terno. A partir daquele momento, eu o tive como amigo. Era a época da vida em que os amigos se faziam rapidamente, com um sorriso. Boa época.

Bruno era uma criança magra, de longos braços e pernas finas. Sua pele era morena e reluzente, assim como seus cabelos, lisos de cor castanha. Os olhos, não lembro ao certo, mas algo me diz que eram cor de mel. Depois daquele sorriso sincero na educação física, ele se juntou ao meu grupo de amigos, composto pelo Guilherme, pelo Bruno Soares - a quem chamarei de Soares -, por mim e, a partir daquele momento, pelo novo Bruno. Ser membro de um grupo sempre foi, durante toda a história da humanidade, uma forma de se proteger dos perigos da natureza humana, selvagem e imprevisível. Sendo uma criança, ter um grupinho, era a forma mais fácil de se proteger dos bullyings que nos eram impostos por crianças que não valem a menção, mas que sempre serão aqueles de memórias mais nítidas. Ter esses amigos como companheiros, e outros que fiz no caminho, me levaram de uma série a outra até onde estou agora.

Enfim, Bruno não me era comum. Acho que foi a primeira vez que reconheci o que era malícia, ainda que não havia ideia da existência dessa palavra: chamávamos de esperteza. Eram várias as situações em que ele conseguia driblar os professores ou dar a volta nos próprios colegas de classe, seja nas palavras mentirosas seja com choros forçados. Tê-lo em nosso grupo era importante, ele era um amigo com habilidades incríveis, ele falava com a clareza e a dicção dos nossos professores, mexia os braços, fazia gestos, sorria e olhava nos olhos. Nunca havia conhecido outro como ele. Foi a primeira pessoa que eu de fato convivi, mas que nunca tive plena confiança na sua amizade. Hoje em dia, é o que mais encontro.

Eram tempos em que amigos de escola eram amigos de apartamentos, de trabalhos de casa, de almoços, de brincadeiras; quando as "tias" e os "tios" eram muitos, quando lanchávamos pão com manteiga e presunto toda semana em uma casa diferente. Nesse tempo passado, numa noite na casa do Soares, estávamos numa festa de família e amigos, com muitas crianças correndo pelo salão, crianças comuns à nossa escola, que nos conheciam e que nós conhecíamos, entre eles os chamados 'bagunceiros'. Eu, Guilherme e Soares estávamos sozinhos na varanda conversando sobre a invasão da casa por esses meninos indesejáveis. Não entendíamos a razão da mãe e do pai de Soares terem convidado as famílias dessas crianças, sem ao menos terem perguntado ao filho se seria divertido chamá-los. Mãe e pai pensam que criança não sente raiva, que não possui mágoa ou ressentimentos, que não tem inimigos; esquecem-se de que os sentimentos são ainda mais latentes quando os vivenciamos na infância, quando temos contato com a raiva ou a angústia pela primeira vez. As crianças são virgens de sentimentos.

A varanda estava com a lâmpada apagada, mas a festa no fundo da garagem iluminava parcialmente nossas faces. Conversávamos e ríamos entre nós, até que ouvimos passos rápidos vindo até a varanda, vários pezinhos se aproximavam, como uma manada de pequenos cabritos. Os bagunceiros estavam todos ali, nos encarando, fazendo piadinhas sobre nós, chamando-nos de "viadinhos", de "bichinhas", ameaçando contar aos nossos pais que estávamos escondidos porque éramos namorados um do outro, gritando que o Soares era um boiola, que o Guilherme era uma gazela e que eu era um "gayzinho". Soares tentou correr até seus pais, para contar tudo o que estava acontecendo mas o Rafael, um bagunceiro magricela, de pele escura e olhos esbugalhados, o pegou pela cintura com a ajuda do Gabriel, um menino loiro, de olhos pretos, com uma cicatriz na testa. Eles nos jogaram num canto da varanda, onde não tínhamos como correr e se aproximaram até seus pés encontrarem os nossos, formando uma barreira. E começaram a chutar nossos tornozelos. Sete contra três, catorze contra seis. Tentávamos nos defender também com as mãos, mas a diferença era injusta.

Nenhum grito era pronunciado, só o barulho dos solavancos e dos pés contra as canelas e contra as paredes, eram ouvidos. No meio de tantos movimentos, eu vi o Bruno, longe da confusão, mas olhando tudo acontecer, por detrás dos seus óculos retangulares e de lentes grossas. A uma boa distância de nós, com as mãos juntas sobre a barriga, com os cabelos sobre a testa e com seus olhos mel, refletindo o que via. Não conseguia identificar um sentimento, se era medo, raiva, graça; ele não expressava um mísero sentimento, até que vi seu sorriso se abrir quando o Guilherme levou um sorrateiro soco na barriga. Um sorriso diferente daquele que eu havia recebido dele na catástrofe futebolística da educação física. Um sorriso angular. Cessou em segundos. A briga surda havia terminado; eu, Guilherme e Soares, sentados no chão, cansados. Nem os bagunceiros nem Bruno estavam mais ali.

No fim da festa, quando todos já iam embora e poucos convidados permaneciam na casa de Soares, Bruno se aproximou, com um olhar tímido. Disse que estava com medo e pediu desculpas por não ter ajudado. Senti o arpão da traição em suas palavras dissimuladas. Desconsiderei suas desculpas completamente.

Não era alguém que eu podia classificar naquela época pueril, onde rótulos são identidades. Eu não conseguia prever como ele enfrentaria certas situações, muito menos como ele se sentia em relação a mim. Era uma pessoa duvidosa, ambígua. Um vazio, ou algo bem transparente. Desde aquela noite, não nos falamos mais. Ele havia saído do grupo e juntou-se a outro. Não sei se foi um processo natural ou uma transição ressentida. O tempo ameniza os rituais da infância. De qualquer forma, ele não deixou um espaço vazio, pois não conseguíamos enxergá-lo, de fato, mesmo quando estava entre nós.

*

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Grão de Giz.

Grão de Giz.

Eu trabalho na noite
No açoite e nas estrelas
Acima do solo em ruas estreitas
Dou o gozo e cedo colo.

Até que as máscaras tombam
Se quebram, e o choro
Que corre sem íris do olho
Vislumbrado por um sonho.

Aí, então
O vão é são
O sim é não
O Deus, o cão.

As paredes derretem
Eu peço e arrepio
O bolso queima em vazio
Agradecidos, sorriem.

De volta ao X
A vida, a correia
Meus pés na areia
Do mar de giz e
Asfalto.

(Yhuri Cruz)
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domingo, 16 de outubro de 2011

Horário de Verão.

Completude de um verão. (Ilustração: Yhuri Cruz)





Horário de verão
  
A hora que passou
Não percebi.
Estava em sonhos,
Mergulhado em ti.
Os ponteiros correram a volta,
Quatro ângulos retos. 
Nós, em obtuso.
Enfim, completos.
(...) 
Porém, incertos. 

(Yhuri Cruz)

domingo, 2 de outubro de 2011

Sobre o cemitério e a Tia Jura.

O Cemitério do Caju se aproximou e subitamente paramos de cantar.

- Eu nunca fui a um enterro. Nem sei ao menos como é um cemitério por dentro. Mas eu amo observar esses túmulos por fora. As estátuas de anjos com longos cabelos, crucifixos gigantes, cristos e santos. Isso me encanta.  - disse mirando os muros cinzas, observando o topo dos túmulos e mausoléus que transpareciam.

- Por que você nunca entrou? Você não passa por aqui todos os dias? Eu mesma já fui a vários enterros. Existem alguns cemitérios bem impressionantes, outros são tão feios como cracolândias. - a brisa forte fazia com que seus cabelos se prendessem a boca. Conseguia transformar o fúnebre em vital. - Vamos entrar para vermos como é? - convidou-me de repente.

- Não, hoje não. Um dia vamos.

- O senhorito tem medo de encarar a morte? - ria com seus grandes dentes brancos enquanto as mãos batiam palmas em deboche. - Vamos lá, estou te convidando!

- Já passamos por ele, não adianta eu querer voltar agora. - disfarcei. O carro já estava a alguns metros a frente da entrada e o retorno era complicado. - Minha tia morreu esses dias. O enterro aconteceu aí dentro.

- Eu a conhecia? - ela me encarava, procurando algum tipo de sentimento represado, alguma mágoa, alguma tristeza ou saudade. Não sei o que encontrara.

- Você não lembra da tia Jura? - braços no volante, mirei seus olhos. Estavam apertados, tentavam espremer alguma memória para fora. - Era uma tia pequena, morena, cabelos cacheados, sempre de vestido... Não se lembra? Dançava e pulava todas as festas; esquentava a cabeça por besteiras.

- Tenho uma mera impressão dela.

- Lembra de uma festa na casa dos meus avós? Estávamos no quintal, junto com a família, conversando e rindo com as crianças. De repente escutamos um "puta que o pariu!" bem sonoro que vinha lá da esquina? Lembra disso? - ríamos com a lembrança vaga. Tia jura começava a tomar silhuetas concretas. - Um "puta que o pariu!" bem alto que invadia o quintal. Lembra que minha vó saiu correndo pelo portão desesperada pensando que alguém tivesse sido assaltado? E era tia Jura que tropeçava seu salto agulha nos buracos do paralelepípedo!

- Ah! Lembro sim. - finalmente tia Jura vinha a sua cabeça: 1,60 metros de altura, pele morena, cabelos castanhos cacheados até o meio das costas, rosto triangular e nariz arrebitado. Vocabulário sujo, pernas finas  e lisas, seios salientes: não recomendada para menores de 18 anos. - Que figura!

- Era, realmente. Eu gostava muito dela. Tinha uma alegria muito contagiante, sincera. Minha mãe comentou que seu enterro estava cheio de amigos e familiares.

- Mas você não foi. - e eu a respondi: "é..". - Está arrependido?

- Sei lá. Eu nunca tive vontade de ir a enterros ou a cemitérios. Criei essa barreira desde criança; sempre achei o clima pesado, e tinha medo de sobrecarregar meu espírito. Hoje, já tenho a curiosidade de saber como que um cemitério é por dentro, porque por fora parece ser algo tão sublime, um espaço quase artístico.   O enterro da tia Jura teria sido uma boa oportunidade de confirmar essa minha romantização do fúnebre. Além dela ter sido uma pessoa marcante na minha vida, foi uma pessoa que me ajudou algumas vezes, sempre com uma boa dose de piada e sacanagem. Perdi essa oportunidade. - minha expressão murchou.

- Você perdeu a oportunidade de vê-la partindo, é verdade. Mas ainda pode muito bem satisfazer sua curiosidade. Tenho certeza que ela adoraria ser visitada um dia qualquer. Ficaria ainda mais feliz. - ela tinha habilidade para criar alternativas de felicidade.

- Espero que a tenham enterrado de salto agulha... - e com sorrisos abertos prosseguimos a viagem.

Boa viagem, tia Jura. (Ilustração: Yhuri Cruz) Clique para ampliar.

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sábado, 1 de outubro de 2011

Ecstasy.

Ecstasy. (Ilustração: Yhuri Cruz ) Clique e veja no tamanho real. 
Sentados dentro do meu corsa 94 vermelho. A pintura fosca, o painel não reluzia, os bancos revestidos de um tecido já envelhecido, desfiado. Eu e ela, voltando de uma noite do centro do Rio de Janeiro, com as janelas escancaradas e o vento fresco rebatendo nos cílios e sombrancelhas: 90 quilômetros por hora e nenhuma melancolia nos ultrapassava. A Avenida Brasil, um dos grandes corredores do Rio, tomava quase 70% do caminho de volta, reto e liso, as luas da Terra brilhavam como rubis no céu da Lucy. Cantarolávamos músicas que nem ao menos soavam nas rádios, tirando o fato de o carro em si não ter espaço para esse tipo de aparelho: de qualquer modo, não havia silêncio entre nossos corpos. Lá estava ela, de vestido florido, azul marinho e vermelho; seus cabelos longos e castanhos levados pela brisa forte para a parte traseira do carro; eu contemplando sua alma enquanto acelerava. Suas mãos brancas dançavam acima de sua cabeça, frequentemente fazendo batuques no teto do carro e nossos corpos se dobravam até uma nova música florescer de nossas mentes, sem sementes. O balanço das cabeças, os sorrisos desavergonhados, as vozes roucas em um catastrófico uníssono, os óculos wayfarer vibrando sem cessar...  

- Hey! Qual a velocidade da alegria?! - a boca cheia de dentes abria o sorriso branco, enquantos as mãos simulavam ondas do mar no lado de fora do carro. Retrato inesquecível.
- O quão rápido os pássaros podem voar? Abra as asas e sinta a corrente!

Ecstasy correndo junto das hemácias, o oxigênio visível, as esferas inquietas em zigue-zague. Monet é meu anjo da guarda, sempre sentado no banco de trás do corsa. A musa e o mestre! Que noite impressionista!(...)
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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Narration.

Vous avez revelé que ce poème n'était pas pour moi. Pardonnez ma présomption d'interpréter son art. Tout ce que je veux c'est que quelqu'un me raconte. J'ai compris votre point de vue de la postmodernité. Éphémérité est ce que je n'ai senti pas pour vous. Ma narration n'est pas encore terminée. Vous aurez une anthologie comme tous les femmes que j'ai aimé.

(Você revelou que aquele poema não era para mim. Perdoe-me a presunção de interpretar sua arte. Tudo o que desejo é alguém para me narrar. Eu entendi sua perspectiva da pós-modernidade. Efemeridade é o que eu não senti por você. Tanto que minha narração ainda não terminou. Terás uma antologia só tua como todas aquelas que amei.)
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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Gabriela.

Gabriela. (Ilustração: Yhuri Cruz. Arte: lápis aquarela)
As batidas por si só. Tuntz tuntz tuntz. Os sons eletrônicos vibravam os vários corpos enérgicos. O álcool causava combustão na sola do pé, fazendo-o soltar-se do chão, do real, do sóbrio. A claridade só era encontrada nos raios verdes que cortavam todos os membros dos dançantes: laser nos braços, nas pernas, na cabeça. Uma carnificina. O resto era breu. O som e o laser eram a cenografia daquela peça de teatro do mundo contemporâneo. Eu, mais uma personagem, sentado no canto, tomando uma caipirinha. Gabriela se aproximou e sentou-se.

- Qual o seu nome?, me perguntou.
- Eu sou Miguel. E você?
- Você é uma pessoa interessante? Quero dizer, vale a pena te conhecer?
- Olhe ao redor. Está vendo as pessoas dançando? Eu sou o único aqui, sentado.
- Eu busco por alguém interessante.
- Pode se dizer que nesse lugar, eu sou o mais interessante que você vai achar. Eu estou em destaque. A ausência de movimento me torna lugar incomum dentro do formigueiro.
- Dentro de um formigueiro, isso significaria que você está morto.
- E você está prestes a me acompanhar na além vida. Não vejo você se mover.

Gabriela me deixou por uns instantes, mas seus olhos não desataram dos meus. Misturou-se aos vultos deslizantes e dançou por alguns minutos. Eu vi suas pernas e seus seios sendo iluminados pelos raios verdes de laser. Foi uma linda cena.

- Você não quer morrer comigo?, perguntei-a.
- A vida não é boa o bastante para você, Miguel?
- Pelo jeito, eu que não sou bom o bastante para a vida., e uns minutos passaram.
- Eu quero alguém interessante. Tem algum amigo?, insistiu.
- Imagina aquele jogo em que uma pessoa usa uma venda e tem de achar os escondidos. É a mesma probabilidade.
- Mas eu estou de olhos abertos.
- E isso só dificulta a busca, não acha?

Algum tipo de conflito acontecia no meio da pista de dança. Jorravam raios de luz branca, como flashes de um papparazi.

- Aquele que está ganhando a briga parece ser interessante., ela disse e ao mesmo tempo me encarava.
- Seus olhos não são azuis nem verdes. São negros como os meus.
- Eu adoraria olhos prateados.
- Olha, o seu interessante ganhou mesmo., remarquei o fim da briga. 
- Já tenho o meu perdedor., Gabriela disse olhando para a multidão que se dissipava e voltava a dançar.
- Você adora um oprimido, não?, eu disse fazendo-a gargalhar.
- Eu gosto de dominar.

Seus lábios eram tão molhados e sua respiração estava quente quando me beijou. Meus braços a enroscavam e sua mão se repousava em minhas coxas. Rasteira e ligeira, me agarrou pela cintura e me levou até a pista de dança.

- Eu não consigo nem te ver!, gritei em seus ouvidos.
- Mas eu estou aqui, Miguel! Como você se sente voltando a vida? A dinâmica do formigueiro não é tão ruim!, e me beijou com força.
- Só faltava a rainha aparecer., mandei o galanteio mais cliché possivel.
- Longe de ser Rainha! Somos todos operários, Miguel! Uma manada de operários buscando luxo e amor!

No fim da noite revelou-se Gabriela. Não reparei que não sabia seu nome. Seus beijos me pressionaram até meus lábios doerem. Estava acompanhada de amigas que se apresentaram uma à uma. Três horas da manhã partiu, sem achar o que procurava. Eu, de lábios inchados.    

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quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Camacho.

O desocupado é vítima de seu estado de espírito permanente e tende a tomar seu tempo barato com atividades igualmente baratas e pífias.

Camacho estava em seu apartamento, num dia qualquer, comum, daqueles que você entra no elevador e se depara com um vizinho que adora te analisar os pés e os calçados, tentando adivinhar sua situação financeira, ou daqueles em que você faz sinal para um ônibus e o motorista não te enxerga, pois a admiração da loira que não consegue achar as moedas da passagem o exige muito mais atenção.

Neste dia, como na maioria, o desocupado acorda, sai da cama sem olhar o relógio, e almoça o café da manhã, sentado à mesa da cozinha por cerca de três quartos de hora. Daí tem certas ideias que surgem frequentemente na sua massa cinzenta devido a constante observação reflexiva do seu espaço de conforto, os 300 m² de sua propriedade. Na cozinha, por exemplo, nesse dia irrelevante de janeiro, ele estava croqueando uma torrada quando olhou para o paninho xadrez que protegia os farelos e respingos de café de ricochetarem na mesa em que comia, evitando a limpeza posterior. Ele segurava a torrada com a mão esquerda, erguida e perto da boca, e com o dedo indicador da mão direita seguia os riscos das linhas retas do tecido xadrez vermelho e verde. Pensou em jogar xadrez mas perdeu o racicínio com o som dos próprios dentes.

Quando já era fim de tarde, depois de admirar os narizes de suas atrizes favoritas, o desocupado lembrou-se do que comeu no café da manhã e, num flash (!), o paninho xadrez o veio à mente. Graças ao homónimo, foi se aventurar em jogatinas de xadrez online.


Camacho fez um login de nome "Camachinho" e escreveu como frase de definição: "Nunca joguei xadrez, mas não sou um peão qualquer". Iniciou partidas com três meninas (alguém pode afirmar?) até encontrar a "Lucy Vargas", que tinha como definição "Só descobrirá minha estratégia na última jogada, quando não houver mais alternativas". O site proporcionava a opção de conversar simultaneamente com o seu adversário durante as partidas.

Daí que "Lucy Vargas" vivia bem ao norte do Amazonas, na fronteira com a Colômbia. Sofria ataques de pânico por conviver frequentemente pela opressão de alguns paramilitares das Forças Revolucionárias, e tinha um cachorro chamado bambu, que era alvo de súbitos momentos de depressão. Foi paixão que arrebatou seus corações. Deu em conversas na madrugada, trocas de mensagens por celular, confusão com fusos horários, confissões emocionadas, cartas diversas que viajaram em todos os meios de transportes precários brasileiros, promessas verdadeiras, saudades fumegantes, mais promessas, brigas da madrugada, felizes aniversários sem abraço, choros descrentes, medo do não futuro, promessas, caixas do carteiro, descrença em ascensão, paixões não consumidas, mais promessas, um último telefonema, mais um telefonema, promessas, traição dele, uma última mensagem, um recorrente ‘impossível’, a última promessa e as contas de telefone no fim de um ano de sentimento.


A desocupação de Camacho era reconhecida cientificamente por alguns analistas como patológica e conveniente. Seu estado permanente, no entanto, sofreu reações adversas durante aproximadamente quatro semanas e meia, após sua separação de Lucy Vargas, nas quais as noites duravam menos, o relógio servia seu propósito de existir e  algumas atividades que exigiam certa dedicação foram incorporadas à sua agenda. Após esse período de recaída, o desocupado ia sempre tomar café da manhã na padaria. Às 15h da tarde. Voltara à rotina. 

E é possível que "Lucy Vargas" tenha se agarrado a bambu nos surtos de depressão, mas nisso Camacho prefere não pensar.
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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Naturalmente.

(...). E foi assim que aconteceu a alegria. Palavra alguma precisou ser escrita. Alguém desvenda por que os "santos batem"?

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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

São Paulo não é sólida.

O resultado do crepúsculo. O pôr do sol dourado que ilumina as curvas retangulares do horizonte. Nuvens que flutuam na órbita do sol viajante, que ia, para voltar um dia qualquer, provavelmente no amanhã, junto com a garoa. Consegue ouvir os passos ocos das pessoas, repletas de desejos: de ir e vir, de conhecer e de rever? Era a rodoviária de São Paulo que emitia sons dissonantes para o espaço. Os motores e  impulsos entravam em sinfonia. E essa disritmia preenchia o que eu era naquele lugar, ser vazio de mim, solidão ambulante em solo paulistano.

Naquele estica e puxa, sentei-me. Meditava, ensopado na inveja que arrebatava meus olhos, que admiravam a beleza das roupas e da pressa alheia, de ter aonde ir, com o que vestir, e para quem voltar. Meus pés tocavam o solo, subiam e desciam acompanhando as trilhas dos comerciais que davam lugar a outras trilhas nas várias tevês ao redor do saguão da rodoviária. As malas abarrotadas de sonhos inalcançáveis rodavam de lá para cá, puxadas por seus donos. Analogias pobres me vem à mente, como essa: malas como troncos, donos como negros, puxadas como trabalho, sonhos como chicotes.

Um dia Bernardi escreveu que tinha medo de ir para o Rio porque lá todos eram felizes, e, em sua solidão crônica ela não queria fingir um sorriso. Encantei-me com a sinceridade de São Paulo, onde a tristeza é real e a moda e os críticos preenchem o vácuo da felicidade. São Paulo não é tão sólida quanto parece.

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domingo, 4 de setembro de 2011

Sem (cor)respondência.

Clarice, às vezes te odeio. (Ilustração: Yhuri Cruz)
No momento subsequente à catástrofe, quando não há no horizonte possibilidades de que a situação se torne ainda mais insuportável, eu perco a compostura, não me importando com vergonhas ou arrependimentos. Eu enfio o pé na jaca sem o menor pesar, ainda que pese. Eu corro pelado, grito seu nome pela varanda para que todos escutem, entupo meu fígado de álcool, permito-me dançar até o cair do dia. Envio mensagens de súplica, de luto, de desespero. Ligo às quatro da manhã só para ouvir sua voz do quinto sono. Esbarro levemente nos seus seios para sentir o que talvez nunca possa admirar de fato. Deito minha cabeça sobre seus ombros, de súbito, para sentir o cheiro dos seus cabelos negros, fazendo com que você fique desorientada com minha importuna insistência. E, reflexo nos seus lindos olhos misteriosos, encaro seu rosto enigmático, sem vergonha, te fazendo corar pela surpresa e pela dúvida vergonhosa: você ainda gosta de mim?

Como amigos que sempre fomos, você não me (cor)respondeu.

***
A Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, localizada no largo da Cinelândia, próxima ao Theatro Municipal,  foi concebida, no início do século XX, pelo General Sousa Aguiar, o qual seguiu o estilo eclético, composto por diversos elementos do neoclassicismo, para o conceito de sua arquitetura. Nós adentramos seu interior. Fui apto a identificar as janelas em estilo romano, retangulares com arcos na parte superior, e você alcançou o sucesso de encontrar raridades de Clarice nas estantes catifundas de fichas do acervo. O dom rege nossas vidas. Eu bem lembro o que você sussurrou para si própria naquele instante de reflexão. Nenhum outro poderia distinguir seus sussurros como eu o faço, o costume de olhar seus lábios me transformou no cientista de sua boca. 

- Quero viver de amor e de palavras... - sua boca formou o concreto inaudível.

Esse seu desejo não me saiu do pensamento, como estilhaços não podem ser retirados sem muita perícia de certos orgãos vitais do corpo humano. Estilhaços de guerra. Um dia ouvi alguém dizer que a guerra nunca é originalmente do soldado que a combate, mas o soldado, no meio dos tiros e do caos, luta a guerra como se ele a tivesse originado.  O medo é o maior legitimador da guerra? É estranho, pois estou em guerra mas já não sinto receio de morrer. Eu vou morrer, eu vou morrer. Eu vou tentar. Eu vou morrer. Podem me chamar de guerreiro sem esperança. Eu vou morrer, mas eu vou tentar.

Então, você quer viver de amor e palavras. Pensei em minha capacidade de te entregar amor, mas não qualquer amor, não amor de supermercado, amor fabricado pelo fordismo, se pudesse te daria amor orgânico, direto da terra para sua mesa de casa, servido de manhã, a luz do sol nos seus olhos e meu amor na sua boca.Você seria agraciada por amor manufaturado. Meu amor.

Quanto às palavras, já não sei. Você as domina com perícia. Sua escrita é sincera, repleta de significados e muito bem amarrada. Você maneja as frases como poucos grandes escritores que já tive oportunidade de ler. Devo ser uma simples palavra para você, daquelas que são fáceis de identificar e que usamos frequentemente, todos os dias, em qualquer oração. Porque você me domina tão facilmente!

Mas sei qual palavra sou, para você. Não é uma palavra feia, pelo contrário, é linda, e até fico feliz de receber tal alcunha como definição. Minha palavra: amigo. Sua palavra: frustração.

***
Era tarde nublada e conversávamos em uma praça cheia de mesas de concreto, às vezes pichadas, às vezes puras de cinza. Os senhores jogavam dama, alguns bebiam cerveja e outros só ficavam admirando as jovens que passavam de vez em quando. Eu te confessei que você era uma mulher complexa demais para qualquer homem entender. Provavelmente, você seria o tipo de esposa que entende completamente o marido, mas não recebe metade da compreensão que dá. E você disse mais uma verdade.

- A raiva te deixa cego e você não pensa no que diz. Você me machuca como ninguém porque, ainda que não me entenda, sabe como me machucar.

Eu só tive a opção de calar-me e fitá-la diretamente em seus olhos. Os minutos foram enchendo a ampuleta, assim como um certo desconcerto originado pelas mágoas que cada um desferiu contra o outro. Mágoas não intencionadas machucam de qualquer forma.

- Não espere sorrisos de mim. Só a ironia dos derrotados.
- Eu só espero você de você mesmo.

***
Nietzsche abatido. (Ilustração: Yhuri Cruz)
O soldado, ainda que ferido por estilhaços que perfuraram sua derme e se fixaram em seu músculo pulsante, sobreviveu. Nietzsche, uma vez, já dissera: "Da Escola de Guerra da Vida - o que não me mata torna-me mais forte". E Deus não morreu.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"Talvez", da escritora Marla de Queiroz.

Talvez a razão... (Ilustração: Yhuri Cruz)
Talvez a verdadeira intimidade eu só tenha buscado com as palavras, e tenha me entupido delas no momento em que poderia estar aprendendo alguma coisa com alguém. (Faço um muro de palavras entre mim e as pessoas. Sou autoexplicativa só pra confundir.)

Talvez eu tenha nascido para uma vida desapaixonada e culta. Talvez eu nunca tenha olhado verdadeiramente o outro, e só tenha visto o texto pronto que criei pra ele. Talvez eu não conheça o que julgava conhecer. E isso me entupiu de certezas que eu não soube abandonar ao longo do caminho.

Uso palavras para não sofrer, para plagiar uma dor, pra fingir que sou leve e que está tudo bem. Uso palavras pra falar de uma chuva que talvez eu não conheça porque não me permiti ficar encharcada dela. E ela virou a metáfora de um relacionamento_ o que pode ser tristemente poético.

Talvez eu só tenha sentido saudade pra falar de outras coisas. Pra usar a palavra "saudade" mesmo, que eu adoro. Acho que estou muito cansada. Falei demais das coisas e , no entanto, não toquei verdadeiramente em nada. Observei e descrevi, cheia de filtros semânticos. Dentro da minha limitação eu interpretei o Universo para que eu coubesse nele, em mim. E alienei as pessoas dentro de conceitos. E arranjei um sentimento pra cada coisa. E pensei que assim, tudo estaria em ordem, sob controle.Eu que me julgava não julgadora, me considerava livre, agora tendo que empurrar as grades dessa prisão de certezas que criei pra mim. Sem poder culpar ninguém. Usando um discurso de alguém que não quer magoar o outro pra descobrir que no fundo só me importei comigo mesma e com os meus medos. Não deixei que o outro experimentasse o que havia de melhor ou de pior em mim. Não deixei que ele escolhesse.Mantive o muro de palavras e o meu discurso pronto pra continuar a salvo do outro lado. Eu que sempre falei de pontes...

Talvez eu seja uma farsa. Talvez eu seja virtualmente inacessível. Alguém que se entope de adjetivos pra entender as coisas e dizer que não se preocupa em entender nada. Eu que sempre falei de amor, não amei o outro em toda a dimensão da pessoa que ele é. Talvez eu tenha me preocupado mais com as vírgulas que não usei nas cartas de amor que escrevi, que com as pessoas que as receberam e que se julgaram amadas.

Talvez eu só tenha dançado pra fingir que gostava de música. Talvez eu só tenha bebido pra fazer parte de um círculo social. Talvez eu só tenha aceitado certas coisas pra poder ser chamada de amiga_ e usei levianamente a palavra amizade.Talvez eu tenha me apaixonado diversas vezes pra fazer parte do círculo de pessoas que sorriem diferente porque estão amando_ e sofri as carências que intercalam as paixões como se fossem reais. Talvez eu tenha rompido relações pra escrever cartas de despedida e mostrar como eu dominava a dor ao escrevê-las. Talvez eu só tenha experimentado as relações dentro da literatura.

Acho que estou realmente cansada. Falei demais sobre tudo e continuo no escuro. E a minha recusa em tocar nas coisas me impede de sair tateando em direção à luz. E mais uma vez eu uso palavras pra tentar me defender de algo, de mim.(Talvez eu precise parar de ler Clarice Lispector... )

Talvez eu devesse escrever uma carta em branco pra dizer que quero silenciar: que se o silêncio ainda estiver esperando por mim, eu aceito. Preciso esquecer as palavras, preciso me despedir delas para começar a experimentar a vida com honestidade. Talvez silenciando eu consiga ser mais honesta com você. Eu que precisei escrever tanto pra dizer isto: que preciso silenciar.

(Talvez eu só tenha escrito isso tudo pra conseguir chorar... E usar a palavra "talvez" pode ser o início do abandono de tantas certezas; o início do uso mais corriqueiro da frase “eu não sei".)
Talvez isso seja um começo de alguma coisa.
Talvez isso seja um fim.
Talvez sejam apenas hormônios...
Mas isso tudo se parece muito com tristeza...

EU NÃO SEI.
*
EU SOU ESTAS RETICÊNCIAS ENTRE PARÊNTESES: (...)

Marla de Queiroz

São tantas silhuetas a cada parágrafo. Minhas, deles e delas, que não consegui deixar de expor o texto por completo. Com todo o meu respeito de leitor, esse texto é da talentosa escritora Marla de Queiroz .  A ilustração é minha. 

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Resistência Orgânica, Utopia Mecânica.

Resistência Orgânica, Utopia Mecânica. (Arte: Yhuri Cruz)
Mecanismos orgânicos com suas roldanas cerebrais, num tatear constante, num pensamento mecânico, acelerando, maximizando, ampliando saídas, fugas, escapes para o futuro satisfatório, que por sua vez, é futuro idealizado por fantasias que os mecanismos superestruturais nos impõem, com seu tatear eterno, num pensamento assustadoramente incorporado ao nosso, ampliando desejos, fetiches, sonhos que os mecanismos orgânicos, nós, aceitamos sem pensar, sem refletir, sem poder parar (?).

Mecanismos orgânicos que possuem força vital mecânica suficiente para fazer com que as máquinas superestruturais parem de funcionar com tanta velocidade, com tanta vontade de fazer tudo rodar, encaixar como ela acha que deve ser, como se o mundo fosse uma engrenagem de pessoas que receberam sem perceber uma pequena chave de encaixe que as encaixe na grande peça maligna (?), fazendo tudo girar em torno da malignitude, suja, feita de aço.

Na estrutura maquinal do mundo, cada peça é insubstituível (?) e essencial (?), e por sua vez tem capacidade de se automover da maneira que achar conveniente, dentro dos parâmetros legais que a lei da estrutura determina, a qual é de certa forma bem abrangente, oferecendo espaço legal o suficiente para que nós, os mecanismos orgânicos, possamos rodar e encaixar no que nos convém, porém, como deixar que essa pequena chave que nos deram para encaixar no grande sistema maquinal do mundo se perca, e que nós nos salvemos da escravidão cerebral.

O primeiro passo é o diminuir da velocidade em que nós circulamos ao redor da maquinaria esperta (?), esquecendo que você devia rodar para a direita e circular para a esquerda,, criando e fazendo com que os outros mecanismos notem sua criação: o parar da engrenagem; quem sabe, caso você consiga chegar a tal patamar, conseguir girar, rodar, encaixar exatamente como sua lataria cansada e bastante utilizada gostaria, pediria, clamaria.

Um só não move o mundo. É necessário que os outros mecanismos orgânicos como você e até mesmo eu, juntemos nossas engrenagens em fusão cerebral para meramente tentar travar a maquinária maligna. Um novo movimento mecânico, dinâmico e não-linear vem por aí (?). Basta esperar e lembrar de diminuir a velocidade.


domingo, 28 de agosto de 2011

Disritmia.

Eu, Martinho. (Arte: Yhuri Cruz)
Aperte o PLAY e ouça antes de ler!
 Martinho da Vila - Disritmia

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 João encarava seus olhos marrons, brilhantes, pequenas lagoas de coca-cola banhada à luz do sol, poças do whisky mais dourado que ele já vira seu pai bebendo. Eles, sentados em dois banquinhos de madeira, sem apoio para as costas, se apoiavam na mesa redonda, decorada com machetaria que formava desenhos de estrelas, e pequenas repetições geométricas ao redor. Era um barzinho da zona sul do Rio de Janeiro que tinha estilo boêmio, repleto de violas, cavaquinhos, letreiros de cervejas grudados às paredes revestidas de madeira cor de tabaco. Os tímpanos ressoavam ao som de samba de raiz, Martinho, Zeca, Caymmi, Cartola, Adoniram, Leci. O bar estava lotado, mas não se escutava vozes estridentes ou risadas alvoroçadas. Era quarta-feira e os consumidores de cerveja e de petiscos pareciam cansados, falavam com os olhos e raras vezes com os lábios, os pés se mexiam com o batuque que ressoava até duas esquinas depois do local originário, os cabelos esvoaçavam com o vento da enseada e os barulhos de copos, talheres e espetinhos faziam parte da composição dos sambas.

João e Camille estavam a conversar sobre o tudo e o sobretudo, sobre o clima e 'o' clima, sobre a noite e à noite. A nova trilha levou o assunto anterior à confissão de João: "Que disritmia que eu sinto quando ouço 'Disritmia', do Martinho da Vila". Ela lhe ofereceu um sorriso amplo, cheio de dentes e lhe perguntou a razão de tal afirmação. Em seu íntimo, Camille adorava descobrir as sutilezas de certos fenômenos no comportamento do ser humano. Ele lhe explicou que Martinho conseguiu captar a essência de um homem apaixonado e carente de afeto, mas sem amplificar necessariamente nem a paixão nem a carência. Ele escreveu o homem que quer ao mesmo tempo se esconder da vida, mas ser encontrado por um amor, ser fotografado pela retina de sua musa. Quer dar-lhe cafuné, a cubrir de dengo, e deslanchar num amor atemporal, um amor hipnótico, sem razão de ser e de não ser. Quer ser ouvido em suas teorias e desejos de vida por alguém que não o ache um romântico inveterado, mas um homem em seu momento romântico.

Seus olhos brilhavam, Camille e João, e não se pronunciava uma palavra. Uma lágrima sem volume surgiu nos olhos de João, fazendo com que ele se contraísse e ficasse cabisbaixo. Ele culpou seu inconsciente de permitir que aquilo acontecesse em frente a Camille e permaneceu calado. Ouviu a voz da mulher: "É isso que você precisa de mim, João?". Camille posicionou o refletor da dúvida sobre a pessoa de João. E sob a camisa, sob o peito, sob a pele, sob os músculos, ouvia-se a sinfonia desregrada daquele coração confuso.

Martinho da Vila apareceu ao seu lado e lhe deu um tapa nos ouvidos. João, então, cantou: "Me deixe hipnotizado prá acabar de vez, com essa disritmia. Vem logo! Vem curar teu nego, que chegou de porre lá da boemia!". Camille e João se beijaram e a música terminou sem um fim.


(In) expressão pessoal.*

Começando.
Eu abro a página em branco.
Um infinito de possibilidades em papel digital  a minha frente.
Nunca vou tão longe, permaneço na área dos sentimentos.
Escrevo, escrevo, cuspo toda a excreção intelectual que minha mente produziu em excesso dentro de mim.
Acabando, me sinto mais leve, contente e um tanto orgulhoso de mim mesmo.

Em seguida.
Eu pego lápis e pinto o papel de grafite.
Cada traço é um desejo de vida. Cada curva, uma mudança necessária.
Pouco a pouco, com o tempo, tudo acaba ganhando forma.
O que antes era só um rascunho, está quase arte-finalizado.
A digitalização da minha arte me transporta para o mundo virtual.

Finalizando.
Junto as letras e as formas.
A suposta essência e a expressão.
A mistura sempre imperfeita mostra o quanto a vida e os sentimentos são subjetivos.
Verificando cada palavra, antes de cuspir isso no mundo digital, percebo minhas características mais aparentes.
Toda essa receita é um ingrediente do que eu sou, do que eu quero ser.

Não existe essência. Só existe a expressão imperfeita de um desejo irreal.

*Sempre sujeito a modificações, nada é estático, nem mesmo a mais racional verdade.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O mundo não a merecia.

Nunca presenciei um céu como aquele. Minha irmã nascera em um dia de sol como nenhum outro antes visto, havia um forro de céu azul de um canto ao outro do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, numa harmonia quase divina, lindas nuvens completavam a obra de arte que era aquele firmamento. Sua vinda ao mundo fez com que a tarde fosse perdida e toda arte não fosse apreciada. Pai, mãe, avós, tios. Nenhum deles nem sequer olhou o céu naquelas vinte e quatro horas, enquanto eu só conseguia ter a atenção do brilho do sol e dos pássaros que voavam ao longe, negros, contrastantes. A atenção do mundo do qual eu fazia parte estava contida dentro de um único fato: a vinda da minha irmã ao mundo do qual eu fazia parte. Naquele tempo, e já faz muito tempo, eu ainda lembro, fiquei dentro do meu quarto, sentado em frente a janela, permitindo que meus olhos admirassem o royal, enquanto meus pensamentos viajavam para a suposta sala onde minha irmã nascera. Fiquei tentando formular uma cena de parto. Um quarto claro, uma cama de alumínio, minha mãe desacomodada sobre a cama, e um pequeno ser, em estado repugnante, saía das suas entranhas. E todos os parentes ao redor, desperdiçando o dia mais lindo de todos os tempos. Egoísmo de sua parte.

Seu nome era Caleido e seus olhos eram azuis. Todos elogiavam sua íris, e adjetivos dos mais curiosos surgiam de tanto em tanto, principalmente pela odiosa imaginação de meu primo, Iuri, que podia criar os nomes mais irritantes do mundo para classificar os olhos de minha pequena irmã. Eles eram como conchas de cor de pele que vieram do precipício mais profundo dos mares, e chegaram, depois de uma longa jornada de marés, à praia. No entanto, depois de anos de ventos, tempestades e quebras de mar, o brilho vazio do recente sumia, restavam apenas duas conchinhas de brilhos profundos e sofridos. De certa forma, seus olhos eram sinistros. Eram como um espelho convexo que refletia a verdadeira natureza de quem os admirava. E eram azuis como o céu do dia mais lindo de todos os tempos. Prepotência de sua parte.

Caleido me atormentava, cometia atos impulsivos e infantis, berrava sons ininteligíveis e depois sorria a me ver. Os dias se sucediam e ela ia ganhando mais inteligência e senso de mundo, compreendendo certas condutas e rejeitando certos fatos. Naquele último dia, ela falou sua primeira palavra, já tinha dois anos e alguns meses de vida. Todos os familiares pensavam seriamente que ela tinha  algum problema relacionado à psicologia, autismo ou demência cognitiva. Ela estava no jardim, era dia de sol - não tão belo quando o dia que nascera - e brincava de rolar na grama e colher minhocas na terra molhada. Ela saiu do chão, pulou como um anjo sem asas, flutuou por alguns instantes e quando aterrisou, caiu bruscamente sobre seu braço direito. Minha mãe, que a vigiava na varanda, correu em sua direção, segurou-a nos braços, enxugou suas lágrimas. Elas estavam abraçadas, Caleido em seu colo, caminhando de volta para a varanda, quando minha irmã falou: 'amor'. Minha mãe arregalou os olhos e Caleido fechou os seus em um sorriso: 'amor'. Sua primeira palavra foi o sonho da humanidade. Pretensão de sua parte.

Reservei esse espaço como confessionário dos meus sentimentos mais profundos e sinceros.  Matei minha pequena irmã naquele dia. Fico um tanto preocupado com as reações de leitores perante essa minha confissão desmedida e irracional, mas não me importo com as rejeições que posso vir a sofrer, eu estou convicto de que não sou culpado daquilo que causei a toda minha família, em especial à minha mãe, que já não consegue me olhar, tocar ou dirigir a palavra. Sou como um fantasma dentro da minha própria casa, sou uma lepra na pele da instituição familiar que costumava existir ao meu redor, que agora se resume a cinzas, lágrimas e sangue. Mas, repito, não por minha causa. Eu matei minha irmã, mas nunca tive a intenção de destruir meu lar. Privo-me deste fardo, desde então. O culpado será sempre aquele que consentiu com a culpa, portanto, eu nunca o serei. Não existe em mim o arrependimento, a sombra ou o espinho.

Matei a minha irmã porque ela era perfeita demais para esse mundo. O mundo não a merecia. Eu a amava. Você pode acreditar em mim?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Naquela noite, os gatos mostraram suas garras.

Naquela noite eu me senti sozinho. Não no sentido corriqueiro de estar sem pessoas ao seu redor, isolado do mundo, do povo carioca sempre receptivo. Não. Sob aquela tenda escura, rodeado de garçons vestidos com chapéus de caubói, e iluminado pela luz de neon verde, vermelho e azul, sentado naquela mesa de madeira, eu me senti sozinho de amor, ou melhor, de afeto. Senti-me inalcançável para qualquer um e até para mim mesmo. Eu olhava ao meu redor e aquele ambiente rebatia o que eu menos precisava sentir. As pessoas pulavam, mexiam os pés e as cabeças, se abraçavam insanamente, rebolavam, se esfregavam como gatos nas pernas dos seus donos. E eu juro que durante toda uma época da minha vida eu pedia por aquilo. Eu queria ser um bichano, queria poder miar e seduzir, lamber e me arrastar por todos. Mas naquela noite eu descobri uma pequena parte de quem eu sou. E eu não sou aquilo.

No entanto, eu tentei ser, desejei ser um bichano. Meu corpo se mexia e liberava uma energia vermelha durante os vários espasmos que a música me fazia ter. E eu a vi em minha frente. Ela, gata borralheira que nunca viria a ser cinderela, seria a responsável por me tornar mais um gato dentro daquela tenda felina, ela seria a perna para enroscar meu corpo. Eu a fitava sem parar, fuzilava-a, diretamente nos olhos - não nos seios ou quadris, mas nos olhos -, coisa que eu faço dificilmente com tanta intensidade. Eu não sou um gato, eu devo ser uma coruja tímida no alto da árvore.

Aproximava-me de seu corpo que se mexia com uma sensualidade estúpida, vazia - era tudo que eu necessitava. Os toques começaram a ser trocados, sutilmente. Hoje percebo que a sutileza não estava lá, somente dentro de mim, mas completamente exterior àquela mulher. Enfim, eu decidi me empurrar diante do meu desejo. "Eu quero isso, eu quero isso". Era o que eu repetia infinitas vezes dentro do meu espectro pensante. Eu não sentia essa vontade de impulso tão forte havia algum tempo, e, olhando dessa maneira, isso era expressão do meu desespero de me sentir junto de alguém de novo. "Eu quero isso, eu quero isso". Eu fui. Meu nariz caminhou alguns centímetros na direção daquela borralheira gata, e, em câmera lenta, minhas células sofriam uma mutação. Pelos de tom caramelo-marrom brotavam de meus poros como as infinitas gotas caem do céu num dia de verão. Meu nariz se reduzia, arredondava-se, estava gelado e negro. Eu me transfigurava finalmente num gato, como todos ali. Eu me sentia prestes a realizar minha vontade.

Centímetro à milímetro, minha boca se aproximava da dela. Já sentia o sabor da vitória, tinha cheiro de perdição. Quando finalmente relei meus lábios contra os dela, ela se afastou em reflexo à minha ação. Afastou-se e sorriu. Sorriso malicioso, de quem estava brincando. E eu afirmo: aquilo não era brincadeira para mim, era meu desejo, era minha fantasia que poderia virar real. Mas ela brincava, como uma gatinha assanhada que arranhava sua bolinha de lã de um lado para o outro e depois a deixava no cantinho para poder aproveitar mais tarde, caso houvesse esse desejo. Eu era 1,85m de pura lã, tinha a mesma utilidade de lã, eu era uma pessoa de lã que estava pendurada por um cabo que subia pelos céus e se prendia numa estrutura feita do puro material - malícia - que a aquela mulher possuía. E, como qualquer gato faria, ela me arranhou com seus olhos e sorriso, e me deixou.

Sentei, e a reflexão de tudo aquilo me roubou os pensamentos. Minha versão frágil afogou todas as outras e me senti uma criança, ali, debruçado naquela mesa de madeira, coberta por gotículas de cerveja ou o álcool que for. Pensava que não era homem, não era sequer um adulto, era uma criança assexuada e besta que não conseguia domar nem uma formiga microscópica, muito menos uma mulher. Sofri. Sofri de verdade, senti inveja de verdade, senti saudades de verdade da minha antiga namorada, e ali permaneci.

Quando finalmente voltei a me enxergar, afinal não há nada que dure para sempre - muito menos o autoflagelamento -, e saí da reflexão, olhei ao redor, e a vi, se enroscando com outro homem. Um pequeno homem, mas possivelmente, um grande felino que possuía muito mais malícia do que aquela gata. Estúpida e com recente textura de lã. Como já havia sentido o pior de mim alguns minutos antes, a merda da autohumilhação não veio com tanta força. Só me senti sozinho, isolado do que eu mais queria, afeto. Fiquei ali, olhando os gatos mostrarem suas garras, enquanto gradualmente percebia que a gatarrada não era meu habitat, que eu não era um gato, e nunca seria, jamais.