quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O mundo não a merecia.

Nunca presenciei um céu como aquele. Minha irmã nascera em um dia de sol como nenhum outro antes visto, havia um forro de céu azul de um canto ao outro do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, numa harmonia quase divina, lindas nuvens completavam a obra de arte que era aquele firmamento. Sua vinda ao mundo fez com que a tarde fosse perdida e toda arte não fosse apreciada. Pai, mãe, avós, tios. Nenhum deles nem sequer olhou o céu naquelas vinte e quatro horas, enquanto eu só conseguia ter a atenção do brilho do sol e dos pássaros que voavam ao longe, negros, contrastantes. A atenção do mundo do qual eu fazia parte estava contida dentro de um único fato: a vinda da minha irmã ao mundo do qual eu fazia parte. Naquele tempo, e já faz muito tempo, eu ainda lembro, fiquei dentro do meu quarto, sentado em frente a janela, permitindo que meus olhos admirassem o royal, enquanto meus pensamentos viajavam para a suposta sala onde minha irmã nascera. Fiquei tentando formular uma cena de parto. Um quarto claro, uma cama de alumínio, minha mãe desacomodada sobre a cama, e um pequeno ser, em estado repugnante, saía das suas entranhas. E todos os parentes ao redor, desperdiçando o dia mais lindo de todos os tempos. Egoísmo de sua parte.

Seu nome era Caleido e seus olhos eram azuis. Todos elogiavam sua íris, e adjetivos dos mais curiosos surgiam de tanto em tanto, principalmente pela odiosa imaginação de meu primo, Iuri, que podia criar os nomes mais irritantes do mundo para classificar os olhos de minha pequena irmã. Eles eram como conchas de cor de pele que vieram do precipício mais profundo dos mares, e chegaram, depois de uma longa jornada de marés, à praia. No entanto, depois de anos de ventos, tempestades e quebras de mar, o brilho vazio do recente sumia, restavam apenas duas conchinhas de brilhos profundos e sofridos. De certa forma, seus olhos eram sinistros. Eram como um espelho convexo que refletia a verdadeira natureza de quem os admirava. E eram azuis como o céu do dia mais lindo de todos os tempos. Prepotência de sua parte.

Caleido me atormentava, cometia atos impulsivos e infantis, berrava sons ininteligíveis e depois sorria a me ver. Os dias se sucediam e ela ia ganhando mais inteligência e senso de mundo, compreendendo certas condutas e rejeitando certos fatos. Naquele último dia, ela falou sua primeira palavra, já tinha dois anos e alguns meses de vida. Todos os familiares pensavam seriamente que ela tinha  algum problema relacionado à psicologia, autismo ou demência cognitiva. Ela estava no jardim, era dia de sol - não tão belo quando o dia que nascera - e brincava de rolar na grama e colher minhocas na terra molhada. Ela saiu do chão, pulou como um anjo sem asas, flutuou por alguns instantes e quando aterrisou, caiu bruscamente sobre seu braço direito. Minha mãe, que a vigiava na varanda, correu em sua direção, segurou-a nos braços, enxugou suas lágrimas. Elas estavam abraçadas, Caleido em seu colo, caminhando de volta para a varanda, quando minha irmã falou: 'amor'. Minha mãe arregalou os olhos e Caleido fechou os seus em um sorriso: 'amor'. Sua primeira palavra foi o sonho da humanidade. Pretensão de sua parte.

Reservei esse espaço como confessionário dos meus sentimentos mais profundos e sinceros.  Matei minha pequena irmã naquele dia. Fico um tanto preocupado com as reações de leitores perante essa minha confissão desmedida e irracional, mas não me importo com as rejeições que posso vir a sofrer, eu estou convicto de que não sou culpado daquilo que causei a toda minha família, em especial à minha mãe, que já não consegue me olhar, tocar ou dirigir a palavra. Sou como um fantasma dentro da minha própria casa, sou uma lepra na pele da instituição familiar que costumava existir ao meu redor, que agora se resume a cinzas, lágrimas e sangue. Mas, repito, não por minha causa. Eu matei minha irmã, mas nunca tive a intenção de destruir meu lar. Privo-me deste fardo, desde então. O culpado será sempre aquele que consentiu com a culpa, portanto, eu nunca o serei. Não existe em mim o arrependimento, a sombra ou o espinho.

Matei a minha irmã porque ela era perfeita demais para esse mundo. O mundo não a merecia. Eu a amava. Você pode acreditar em mim?

Um comentário: