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"Irritando Valéria". (Ilustração: Yhuri Cruz. Quadro ao fundo: Henri Matisse)
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Numa noite de primavera, a mulher de quarenta e poucos anos levantou-se da cama. O quarto estava escuro e suas pequenas mãos, atordoadas e sensíveis. Foi estapeando a parede até achar o pequeno interruptor retangular; manchou o espelho com o óleo natural de suas palmas.
Clic. A luz se fez e seus olhos responderam com um reflexo de reclusão dolorida. Andou devagar até o banheiro, encontrou a pia bem a sua frente, lavou o rosto e olhou-se durante alguns segundos no espelho. Sentiu sua pele um tanto escamosa e flácida. Perguntou-se da hora e voltou ao quarto onde dormia há poucos minutos. 20:15, marcava o relógio digital da cômoda ao lado da cama de casal, que se encontrava num estado de revolta, com os travesseiros marcados com crateras arredondadas.
Morena farta, de grandes quadris e sorriso gentil, tinha esse costume aos fins de semana: cismava de dormir o dia todo. Despertava somente para o almoço e para a refeição do fim do dia. Os dois filhos e o pai estavam a sua espera; planejavam comer algo fora de casa e aproveitar o fim do domingo. Algo que pode ser classificado como
timing acordou a dona no exato momento de exaltação entre os homens da família. Estavam com fome e iriam acordá-la de qualquer forma. Não foi necessário, é claro.
Valéria era uma pessoa muito gentil. Generosa como poucos, ficava encantada em poder ajudar ao próximo de qualquer forma, sempre ligeira e prática. Quantos pares de chinelinhos já havia distribuído pelas ruas pobres dos bairros da zona oeste do Rio de Janeiro? Certamente uma quantidade tão grande quanto os reais gastos para pagar os variados
bicos que inventava para auxiliar os meninos e meninas, jovens e senhoras que estavam
na pior. Trabalhos simples. Às vezes ajudá-la na arrumação de um armário, às vezes tomar conta de seus filhos. Mas o dinheiro pago sempre correspondia a mais do que o trabalho pedia. Não se incomodava em gastar, pois seu otimismo era de um nível quase sobrenatural. Tirando o fato de nascer numa família umbandista, suas ambições não tardavam em acontecer, como mágica de fé.
A mulher ouvia os murmúrios de seus homens. Do outro cômodo, seus filhos transmitiam ao pai, com voz de súplica, a fome que sentiam. O chefe, severo, mandava-os esperar mais um pouco.
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Já acordei, filhotes! - gritou a dona, causando alívio geral.
Como a maioria das mulheres antes de sair para qualquer lugar que seja, Valéria organizava mentalmente todas as combinações de roupas que poderia vestir. Foi até a varanda do quarto e analisou as condições climáticas. "
Sem saia ou vestido hoje, olha quanto vento!", foi o que pensou quando se decidiu por uma calça jeans. Abriu seu armário sabendo a calça exata que usaria, um jeans escuro, quase negro, com uns botões cor de cobre na ponta dos bolsos e com detalhes inenarráveis nos bolsos traseiros. A jeans e uma bata vinho, com um cordão de pérolas falsas. Tudo se arrumava em sua mente, como um quebra-cabeça de vestimentas. A dona estava feliz por ter decidido tão rapidamente; o mais comum era que levasse um pouco mais de tempo.
A bata jazia esticada sobre a cama, o cordão de pérolas, tão longo que dava duas voltas ao redor do pescoço, permanecia pendurado num cabideiro atrás da porta do banheiro. Valéria resolveu calçar umas sapatilhas pretas, com miúdos detalhes de renda, que comprara na semana anterior. Tudo claro em sua cabeça e seus pés, como um manequim de loja. Só faltava a calça jeans. Fechava uma gaveta enquanto abria sua subsequente, verificava os cabides e abaixava-se para procurar no breu debaixo da cama. A cada canto do quarto que olhava e não obtinha resultados, mais exaltada e espalhafatosa se tornava. Deixou seu aposento e foi procurar no quartinho da empregada, que ficava junto da cozinha. Abriu os dois pequenos armários e conseguiu encontrar uma presilha que vinha dando falta, mas não vislumbrou nem um mísero botão de cobre da sua calça jeans.
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Jorge e José, vejam no guarda roupa de vocês se a Lú não largou nenhuma calça minha aí!
Poucos minutos depois, a casa estava em lamúrias. Todos os cômodos sentiram a presença das mãos da dona Valéria em seus armários, gavetas, baús e estantes. Os tapetes corriam, arrastados pelos corredores com os passos apressados da morena de grandes quadris; o pequeno poodle da família estava atônito como nos dias em que a família viajava e o deixava com os vizinhos; José, o filho mais novo, reclamava baixinho tanto da fome quanto da ocasião de estar procurando "
essa maldita calça às 21:30 da noite de domingo!".
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Mais que caralho! - gritava em todos os cantos do apartamento. -
Poucas coisas tiram o meu humor, mas quando eu não acho o que eu procuro, isso me tira do sério. Eu fico puta. - disse, realmente puta. -
Guardar dentro da sua casa e você não saber onde está! - foi o que pronunciou quase chorando.
O pai e os dois filhos faziam uma varredura de resgate pelo apartamento de 6 cômodos, sem obter nenhum resultado gratificante. A calça havia se perdido. Assim como a noite. Dona Valéria desistira de tudo, se trancou no quarto, chorou baixinho por rápidos minutos, levantou-se, lavou o rosto e saiu para beber um pouco d'água. Ainda estressada, ouve-se da cozinha uma mistura de lamento e reclamação, num tom de fúria: "
Eu quero uma água fresca! Mas ou tá tudo quente ou tudo congelado! Mais que merda!". E voltou a se fechar no quarto.
Valéria caiu no sono com os olhos marejados; os filhos e o pai, cansados de procurar a calça, desistiram e se renderam a fritar um hambúrguer de mercado para lancharem com ovo mexido; o poodle ficou efervescente quando percebeu que não haveria viagem alguma.
Quanto à calça jeans com botões de cobre, só restaram hipóteses da sua existência naquela noite.
*
Dois dia depois, numa curta manhã de céu nublado, antes mesmo de acordar, a calça bate à cuca da dona. "
Era sonho ou realidade?", foi o que se perguntou ao vir em sua mente a imagem divina de sua calça dobrada perfeita na terceira gaveta de cima para baixo do seu armário. Levanta-se sóbria do sono, dá a volta na cama - o marido, esparramado, parecia gostar do sonho que lhe cabia - e abre calmamente o compartimento que revelou-se em seu sonho como a luz de uma sombra de domingo. Frustração, raiva e tristeza. Nenhuma calça ali. Valéria, conformada, volta para cama e dorme mais alguns minutos antes de levantar-se e ir trabalhar.
O café da manhã estava posto à mesa como costume de todos os dias, exceto aos domingos. Uma harmoniosa mistura de pão, manteiga, queijos e diversos potinhos de doces e biscoitos criavam uma linda cena colorida. Os dois irmãos entram na cozinha, saludam a
Lú e voltam para seus quartos com um pão em cada mão, e leite achocolatado na outra.
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Bom dia, Lú. Por acaso você não viu uma calça minha? Era azul escura, quase preta, com uns detalhes brancos no bolso traseiro e uns botões de cobre, linda... Você viu?
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Ih, dona...
Luciana, mistura de personalidade forte entre Bahia e Rio de Janeiro, apertou os olhos e bateu o pé direito no chão de mármore da cozinha por uns 10 segundos. Saiu da cozinha de súbito, atravessou a sala de estar, o corredor, o banheiro e chegou finalmente ao quarto da dona. O marido brincava com o cãozinho poodle em cima da cama. "
Licença, patrão", foi o que disse ao homem, e, com o consentimento calado, adentrou o quarto. Abriu com destreza a segunda gaveta do armário do patrão e retirou dali uma calça dobrada.
"Porra, Lú ...", foi o que conseguiu ouvir da voz rouca do homem, que se dava conta do que representava tal peça de roupa. Na cozinha, chega com a calça nos braços, como um bebê.
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Desculpa.. Confundi e coloquei no armário do patrão.
Valéria conteve tanto a exultante pulsão física de alegria e de alívio, quanto a vontade feroz de berrar cabritos aos montes com a empregada.
"Ai, que bom..", foi o que sussurrou para si mesma. Pegou a calça nas mãos, cheirou-a rapidamente, rumou ao seu quarto e guardou-a na terceira gaveta de seu armário, como viu no sonho que tivera há pouco.
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Acho que sonhei com o futuro - disse a si mesma, sorrindo de uma orelha a outra, refletindo no quanto a vida é boa quando se tem paciência.
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