terça-feira, 30 de agosto de 2011

Resistência Orgânica, Utopia Mecânica.

Resistência Orgânica, Utopia Mecânica. (Arte: Yhuri Cruz)
Mecanismos orgânicos com suas roldanas cerebrais, num tatear constante, num pensamento mecânico, acelerando, maximizando, ampliando saídas, fugas, escapes para o futuro satisfatório, que por sua vez, é futuro idealizado por fantasias que os mecanismos superestruturais nos impõem, com seu tatear eterno, num pensamento assustadoramente incorporado ao nosso, ampliando desejos, fetiches, sonhos que os mecanismos orgânicos, nós, aceitamos sem pensar, sem refletir, sem poder parar (?).

Mecanismos orgânicos que possuem força vital mecânica suficiente para fazer com que as máquinas superestruturais parem de funcionar com tanta velocidade, com tanta vontade de fazer tudo rodar, encaixar como ela acha que deve ser, como se o mundo fosse uma engrenagem de pessoas que receberam sem perceber uma pequena chave de encaixe que as encaixe na grande peça maligna (?), fazendo tudo girar em torno da malignitude, suja, feita de aço.

Na estrutura maquinal do mundo, cada peça é insubstituível (?) e essencial (?), e por sua vez tem capacidade de se automover da maneira que achar conveniente, dentro dos parâmetros legais que a lei da estrutura determina, a qual é de certa forma bem abrangente, oferecendo espaço legal o suficiente para que nós, os mecanismos orgânicos, possamos rodar e encaixar no que nos convém, porém, como deixar que essa pequena chave que nos deram para encaixar no grande sistema maquinal do mundo se perca, e que nós nos salvemos da escravidão cerebral.

O primeiro passo é o diminuir da velocidade em que nós circulamos ao redor da maquinaria esperta (?), esquecendo que você devia rodar para a direita e circular para a esquerda,, criando e fazendo com que os outros mecanismos notem sua criação: o parar da engrenagem; quem sabe, caso você consiga chegar a tal patamar, conseguir girar, rodar, encaixar exatamente como sua lataria cansada e bastante utilizada gostaria, pediria, clamaria.

Um só não move o mundo. É necessário que os outros mecanismos orgânicos como você e até mesmo eu, juntemos nossas engrenagens em fusão cerebral para meramente tentar travar a maquinária maligna. Um novo movimento mecânico, dinâmico e não-linear vem por aí (?). Basta esperar e lembrar de diminuir a velocidade.


domingo, 28 de agosto de 2011

Disritmia.

Eu, Martinho. (Arte: Yhuri Cruz)
Aperte o PLAY e ouça antes de ler!
 Martinho da Vila - Disritmia

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 João encarava seus olhos marrons, brilhantes, pequenas lagoas de coca-cola banhada à luz do sol, poças do whisky mais dourado que ele já vira seu pai bebendo. Eles, sentados em dois banquinhos de madeira, sem apoio para as costas, se apoiavam na mesa redonda, decorada com machetaria que formava desenhos de estrelas, e pequenas repetições geométricas ao redor. Era um barzinho da zona sul do Rio de Janeiro que tinha estilo boêmio, repleto de violas, cavaquinhos, letreiros de cervejas grudados às paredes revestidas de madeira cor de tabaco. Os tímpanos ressoavam ao som de samba de raiz, Martinho, Zeca, Caymmi, Cartola, Adoniram, Leci. O bar estava lotado, mas não se escutava vozes estridentes ou risadas alvoroçadas. Era quarta-feira e os consumidores de cerveja e de petiscos pareciam cansados, falavam com os olhos e raras vezes com os lábios, os pés se mexiam com o batuque que ressoava até duas esquinas depois do local originário, os cabelos esvoaçavam com o vento da enseada e os barulhos de copos, talheres e espetinhos faziam parte da composição dos sambas.

João e Camille estavam a conversar sobre o tudo e o sobretudo, sobre o clima e 'o' clima, sobre a noite e à noite. A nova trilha levou o assunto anterior à confissão de João: "Que disritmia que eu sinto quando ouço 'Disritmia', do Martinho da Vila". Ela lhe ofereceu um sorriso amplo, cheio de dentes e lhe perguntou a razão de tal afirmação. Em seu íntimo, Camille adorava descobrir as sutilezas de certos fenômenos no comportamento do ser humano. Ele lhe explicou que Martinho conseguiu captar a essência de um homem apaixonado e carente de afeto, mas sem amplificar necessariamente nem a paixão nem a carência. Ele escreveu o homem que quer ao mesmo tempo se esconder da vida, mas ser encontrado por um amor, ser fotografado pela retina de sua musa. Quer dar-lhe cafuné, a cubrir de dengo, e deslanchar num amor atemporal, um amor hipnótico, sem razão de ser e de não ser. Quer ser ouvido em suas teorias e desejos de vida por alguém que não o ache um romântico inveterado, mas um homem em seu momento romântico.

Seus olhos brilhavam, Camille e João, e não se pronunciava uma palavra. Uma lágrima sem volume surgiu nos olhos de João, fazendo com que ele se contraísse e ficasse cabisbaixo. Ele culpou seu inconsciente de permitir que aquilo acontecesse em frente a Camille e permaneceu calado. Ouviu a voz da mulher: "É isso que você precisa de mim, João?". Camille posicionou o refletor da dúvida sobre a pessoa de João. E sob a camisa, sob o peito, sob a pele, sob os músculos, ouvia-se a sinfonia desregrada daquele coração confuso.

Martinho da Vila apareceu ao seu lado e lhe deu um tapa nos ouvidos. João, então, cantou: "Me deixe hipnotizado prá acabar de vez, com essa disritmia. Vem logo! Vem curar teu nego, que chegou de porre lá da boemia!". Camille e João se beijaram e a música terminou sem um fim.


(In) expressão pessoal.*

Começando.
Eu abro a página em branco.
Um infinito de possibilidades em papel digital  a minha frente.
Nunca vou tão longe, permaneço na área dos sentimentos.
Escrevo, escrevo, cuspo toda a excreção intelectual que minha mente produziu em excesso dentro de mim.
Acabando, me sinto mais leve, contente e um tanto orgulhoso de mim mesmo.

Em seguida.
Eu pego lápis e pinto o papel de grafite.
Cada traço é um desejo de vida. Cada curva, uma mudança necessária.
Pouco a pouco, com o tempo, tudo acaba ganhando forma.
O que antes era só um rascunho, está quase arte-finalizado.
A digitalização da minha arte me transporta para o mundo virtual.

Finalizando.
Junto as letras e as formas.
A suposta essência e a expressão.
A mistura sempre imperfeita mostra o quanto a vida e os sentimentos são subjetivos.
Verificando cada palavra, antes de cuspir isso no mundo digital, percebo minhas características mais aparentes.
Toda essa receita é um ingrediente do que eu sou, do que eu quero ser.

Não existe essência. Só existe a expressão imperfeita de um desejo irreal.

*Sempre sujeito a modificações, nada é estático, nem mesmo a mais racional verdade.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O mundo não a merecia.

Nunca presenciei um céu como aquele. Minha irmã nascera em um dia de sol como nenhum outro antes visto, havia um forro de céu azul de um canto ao outro do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, numa harmonia quase divina, lindas nuvens completavam a obra de arte que era aquele firmamento. Sua vinda ao mundo fez com que a tarde fosse perdida e toda arte não fosse apreciada. Pai, mãe, avós, tios. Nenhum deles nem sequer olhou o céu naquelas vinte e quatro horas, enquanto eu só conseguia ter a atenção do brilho do sol e dos pássaros que voavam ao longe, negros, contrastantes. A atenção do mundo do qual eu fazia parte estava contida dentro de um único fato: a vinda da minha irmã ao mundo do qual eu fazia parte. Naquele tempo, e já faz muito tempo, eu ainda lembro, fiquei dentro do meu quarto, sentado em frente a janela, permitindo que meus olhos admirassem o royal, enquanto meus pensamentos viajavam para a suposta sala onde minha irmã nascera. Fiquei tentando formular uma cena de parto. Um quarto claro, uma cama de alumínio, minha mãe desacomodada sobre a cama, e um pequeno ser, em estado repugnante, saía das suas entranhas. E todos os parentes ao redor, desperdiçando o dia mais lindo de todos os tempos. Egoísmo de sua parte.

Seu nome era Caleido e seus olhos eram azuis. Todos elogiavam sua íris, e adjetivos dos mais curiosos surgiam de tanto em tanto, principalmente pela odiosa imaginação de meu primo, Iuri, que podia criar os nomes mais irritantes do mundo para classificar os olhos de minha pequena irmã. Eles eram como conchas de cor de pele que vieram do precipício mais profundo dos mares, e chegaram, depois de uma longa jornada de marés, à praia. No entanto, depois de anos de ventos, tempestades e quebras de mar, o brilho vazio do recente sumia, restavam apenas duas conchinhas de brilhos profundos e sofridos. De certa forma, seus olhos eram sinistros. Eram como um espelho convexo que refletia a verdadeira natureza de quem os admirava. E eram azuis como o céu do dia mais lindo de todos os tempos. Prepotência de sua parte.

Caleido me atormentava, cometia atos impulsivos e infantis, berrava sons ininteligíveis e depois sorria a me ver. Os dias se sucediam e ela ia ganhando mais inteligência e senso de mundo, compreendendo certas condutas e rejeitando certos fatos. Naquele último dia, ela falou sua primeira palavra, já tinha dois anos e alguns meses de vida. Todos os familiares pensavam seriamente que ela tinha  algum problema relacionado à psicologia, autismo ou demência cognitiva. Ela estava no jardim, era dia de sol - não tão belo quando o dia que nascera - e brincava de rolar na grama e colher minhocas na terra molhada. Ela saiu do chão, pulou como um anjo sem asas, flutuou por alguns instantes e quando aterrisou, caiu bruscamente sobre seu braço direito. Minha mãe, que a vigiava na varanda, correu em sua direção, segurou-a nos braços, enxugou suas lágrimas. Elas estavam abraçadas, Caleido em seu colo, caminhando de volta para a varanda, quando minha irmã falou: 'amor'. Minha mãe arregalou os olhos e Caleido fechou os seus em um sorriso: 'amor'. Sua primeira palavra foi o sonho da humanidade. Pretensão de sua parte.

Reservei esse espaço como confessionário dos meus sentimentos mais profundos e sinceros.  Matei minha pequena irmã naquele dia. Fico um tanto preocupado com as reações de leitores perante essa minha confissão desmedida e irracional, mas não me importo com as rejeições que posso vir a sofrer, eu estou convicto de que não sou culpado daquilo que causei a toda minha família, em especial à minha mãe, que já não consegue me olhar, tocar ou dirigir a palavra. Sou como um fantasma dentro da minha própria casa, sou uma lepra na pele da instituição familiar que costumava existir ao meu redor, que agora se resume a cinzas, lágrimas e sangue. Mas, repito, não por minha causa. Eu matei minha irmã, mas nunca tive a intenção de destruir meu lar. Privo-me deste fardo, desde então. O culpado será sempre aquele que consentiu com a culpa, portanto, eu nunca o serei. Não existe em mim o arrependimento, a sombra ou o espinho.

Matei a minha irmã porque ela era perfeita demais para esse mundo. O mundo não a merecia. Eu a amava. Você pode acreditar em mim?

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Naquela noite, os gatos mostraram suas garras.

Naquela noite eu me senti sozinho. Não no sentido corriqueiro de estar sem pessoas ao seu redor, isolado do mundo, do povo carioca sempre receptivo. Não. Sob aquela tenda escura, rodeado de garçons vestidos com chapéus de caubói, e iluminado pela luz de neon verde, vermelho e azul, sentado naquela mesa de madeira, eu me senti sozinho de amor, ou melhor, de afeto. Senti-me inalcançável para qualquer um e até para mim mesmo. Eu olhava ao meu redor e aquele ambiente rebatia o que eu menos precisava sentir. As pessoas pulavam, mexiam os pés e as cabeças, se abraçavam insanamente, rebolavam, se esfregavam como gatos nas pernas dos seus donos. E eu juro que durante toda uma época da minha vida eu pedia por aquilo. Eu queria ser um bichano, queria poder miar e seduzir, lamber e me arrastar por todos. Mas naquela noite eu descobri uma pequena parte de quem eu sou. E eu não sou aquilo.

No entanto, eu tentei ser, desejei ser um bichano. Meu corpo se mexia e liberava uma energia vermelha durante os vários espasmos que a música me fazia ter. E eu a vi em minha frente. Ela, gata borralheira que nunca viria a ser cinderela, seria a responsável por me tornar mais um gato dentro daquela tenda felina, ela seria a perna para enroscar meu corpo. Eu a fitava sem parar, fuzilava-a, diretamente nos olhos - não nos seios ou quadris, mas nos olhos -, coisa que eu faço dificilmente com tanta intensidade. Eu não sou um gato, eu devo ser uma coruja tímida no alto da árvore.

Aproximava-me de seu corpo que se mexia com uma sensualidade estúpida, vazia - era tudo que eu necessitava. Os toques começaram a ser trocados, sutilmente. Hoje percebo que a sutileza não estava lá, somente dentro de mim, mas completamente exterior àquela mulher. Enfim, eu decidi me empurrar diante do meu desejo. "Eu quero isso, eu quero isso". Era o que eu repetia infinitas vezes dentro do meu espectro pensante. Eu não sentia essa vontade de impulso tão forte havia algum tempo, e, olhando dessa maneira, isso era expressão do meu desespero de me sentir junto de alguém de novo. "Eu quero isso, eu quero isso". Eu fui. Meu nariz caminhou alguns centímetros na direção daquela borralheira gata, e, em câmera lenta, minhas células sofriam uma mutação. Pelos de tom caramelo-marrom brotavam de meus poros como as infinitas gotas caem do céu num dia de verão. Meu nariz se reduzia, arredondava-se, estava gelado e negro. Eu me transfigurava finalmente num gato, como todos ali. Eu me sentia prestes a realizar minha vontade.

Centímetro à milímetro, minha boca se aproximava da dela. Já sentia o sabor da vitória, tinha cheiro de perdição. Quando finalmente relei meus lábios contra os dela, ela se afastou em reflexo à minha ação. Afastou-se e sorriu. Sorriso malicioso, de quem estava brincando. E eu afirmo: aquilo não era brincadeira para mim, era meu desejo, era minha fantasia que poderia virar real. Mas ela brincava, como uma gatinha assanhada que arranhava sua bolinha de lã de um lado para o outro e depois a deixava no cantinho para poder aproveitar mais tarde, caso houvesse esse desejo. Eu era 1,85m de pura lã, tinha a mesma utilidade de lã, eu era uma pessoa de lã que estava pendurada por um cabo que subia pelos céus e se prendia numa estrutura feita do puro material - malícia - que a aquela mulher possuía. E, como qualquer gato faria, ela me arranhou com seus olhos e sorriso, e me deixou.

Sentei, e a reflexão de tudo aquilo me roubou os pensamentos. Minha versão frágil afogou todas as outras e me senti uma criança, ali, debruçado naquela mesa de madeira, coberta por gotículas de cerveja ou o álcool que for. Pensava que não era homem, não era sequer um adulto, era uma criança assexuada e besta que não conseguia domar nem uma formiga microscópica, muito menos uma mulher. Sofri. Sofri de verdade, senti inveja de verdade, senti saudades de verdade da minha antiga namorada, e ali permaneci.

Quando finalmente voltei a me enxergar, afinal não há nada que dure para sempre - muito menos o autoflagelamento -, e saí da reflexão, olhei ao redor, e a vi, se enroscando com outro homem. Um pequeno homem, mas possivelmente, um grande felino que possuía muito mais malícia do que aquela gata. Estúpida e com recente textura de lã. Como já havia sentido o pior de mim alguns minutos antes, a merda da autohumilhação não veio com tanta força. Só me senti sozinho, isolado do que eu mais queria, afeto. Fiquei ali, olhando os gatos mostrarem suas garras, enquanto gradualmente percebia que a gatarrada não era meu habitat, que eu não era um gato, e nunca seria, jamais.