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Thiago e Dona Juscelina (Ilustração: Yhuri Cruz) + "A Casa Branca", de Van Gogh.
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Thiago amava, mas desconhecia a razão. Vivia todos os anos, dias e semanas, como ser vazio e frio, afinal eram só dias, meros acúmulos de horas. Até que chegava janeiro, e sua feição mudava: acendia e iluminava todos os dentes. Um mistério que não entendia: cultivava tamanha paixão por um dia em especial dentro do ano. Seu aniversário era no dia 10 de janeiro, comemorado coincidentemente junto com o de seu pai, no entanto, ardia em seu peito jovem (19 anos) um apego crescente pelo dia 9 de janeiro. O dia precedente ao seu aniversário de nascimento lhe parecia tão mais familiar.
Estranho, era o que sempre pensava. Mas daí o dia 9 lhe parecia revigorante e esquecia a estranheza. Para Thiago,
estranho mesmo era o dia 10, de seu aniversário. Algo estava sempre fora de lugar, sorria os parabéns mas não percebia euforia em canto nenhum de si mesmo. Que esquisito...
Os parentes mais próximos nunca deram a devida atenção ao desconforto do jovem com o dia do próprio aniversário. Todo dia 10 de janeiro, sentados em rodinhas, com latas de cerveja no chão e canecas no punho, discutiam a visível prostração de Thiago nesse dia em específico. Sua mãe sempre dizia:
- Ontem ele estava tão bem, sorridente, enérgico... Mas todo dia 10 é assim. Acho que sente inveja do pai ou algo do tipo, por não ter uma festa só dele. Não sei dizer.
Especulações e gargalhadas rugiam sonoras das rodinhas de conversas. O jovem fingia não ouvir; fingia também abrir um sorriso mais convincente. Enquanto vivia os dias 9 de janeiro com alegria, rezava para que o dia seguinte passasse bem rapidamente, sem surpresas ou indagações, só varasse como qualquer dia normal do ano, o que não era.
- É seu aniversário, filho! Trate de aproveitá-lo! - dizia-lhe o pai.
*
Algum tempo se passara desde então. Thiago já completava mais de 40 anos, com mulher e filhos, uma família formada. Sua vó, dona Juscelina, já passava dos 90 anos com uma vitalidade admirável. Era com ela que o homem Thiago conversava sobre a vida e desabafava angústias de trabalho, mulher, amantes, entre as fofocas mais interessantes da família. Somente aos seus 34 anos de idade encontrou na Vó Juscelina uma correspondente de suas ideias. Já coberta por camadas e sobrecamadas de rugas, com cabelos finos e negros de tinta capilar, com pernas fortes e ligeiras e visão debilitada, a velha senhora, mãe de seu pai, parecia compreender alguns de seus pesares mais inconscientes, seus preconceitos e suas admirações.
Numa tarde de dezembro, perto da virada do ano, Thiago e dona Juscelina conversavam na varanda da casa da vovó.
- E chega janeiro novamente, né dona Juscelina? Eu amo esse mês, em especial. - disse Thiago, sorrindo ao final do comentário.
- É, meu neto? Janeiro é o seu mês, afinal. Seu e de seu pai. - Dona Juscelina mirava um gatinho champanhe que pulava o portão da casa do vizinho de frente. - Agora que me deu na telha, rapazinho, o que farão nos seus aniversários? - perguntou.
- Ah, vó, nem ligo pra isso. Todos os familiares sabem que não gosto do dia do meu aniversário. - respondeu-lhe emburrado. - Essa nossa família é uma coisa de louco. Nunca faltam motivos para zombar.
Dona Juscelina deu uma gargalhada pausada e divertida. Enquanto isso, o gatinho do outro lado da rua já tinha escalado o muro e tentava alcançar uma janela. Ameaçava um grande salto, mas calculava a força do impulso.
- Mas não é, vó? Já escutei cada coisa. Que tenho medo da morte, que tenho medo de envelhecer e esquecer, que tenho inveja do meu pai, que odeio reunir a família, que sou egoísta. Até já me falaram que meus filhos não teriam aniversários decentes, porque eu não deixaria, já que sou ranzinza. Onde já se viu tanta merda junta? De aniversário, só ganho comentários dispensáveis de presente.
Mais uma gargalhada. E o gato se preparava.
- Até hoje eu lembro o dia em que você nasceu, Thiago, no Hospital Santa Lúcia. Como chovia e trovejava. Mas óbvio que não era mau agouro, é que naquele verão choveu quase todos os dias mesmo. Era noite do dia 9, quase meia-noite, e você nasceu. Branquinho, mas coberto daquelas coisinhas nojentas. Uma linda criança. Agora esse rapagão. - Dona Juscelina lhe contava a história com os olhos fechados, como se isso ajudasse a velha senhora a relembrar da situação.
- Vó, a senhora deve estar enganada. Eu não nasci no dia 9. De acordo com a certidão, eu nasci no dia 10. Meia-noite e uns pouquinhos. - Sabe quando algo está a ponto de se revelar e você fica ansioso e agitado? Thiago estava exatamente dessa forma.
O gatinho saltou.
- Naquele dia, meu neto, depois que você nasceu ainda eram onze e trinta e pouco da noite. Ainda era dia 9. Mas o seu pai pediu ao doutor que ele atrasasse seu nascimento na certidão, para que vocês comemorassem juntos. Seria como um presente para ele. Por isso é que vocês comemoram todo dia 10. - respondeu-lhe dona Juscelina, com um sorriso de saudade.
Câmera lenta. O gatinho, agora, jazia no ar de corpo arqueado, os pelos cor de champanhe dançavam com o forte impulso, os olhinhos claros e fumegantes do felino miravam o parapeito da janela, as garras afiadas já sentiam o destino ao qual se agarrariam. Do outro lado da rua, Thiago estava com uma expressão neutra. A razão lhe agitava o cérebro, mas o corpo permanecia imóvel. Todo aquele rancor tinha agora uma nitidez. Aquele dia não era o seu. Aquelas festas não eram suas. Aqueles parentes não comemoravam em sua homenagem, mas bebiam para seu pai. Pai, esse ser egoísta. Tinha vontade de lhe gritar e enforcar o pescoço até que pedisse desculpas.
Mudança de foco. O gato tem um alerta instintivo. O impulso foi mais forte que o necessário. Se continuar nessa velocidade, não se deterá na janela, mas cairá no solo de dentro do quarto, podendo machucar-se seriamente. O felino se detém no ar, contorcendo-se e impondo ao corpo uma queda. Ploft. O gatinho champanhe está no chão novamente. Thiago e dona Juscelina avistaram a queda do gato, surpresos.
*
No dia seguinte, 29 de dezembro, Thiago dirigiu sua vó Juscelina e seu pai a um cartório da cidade para servirem de testemunhas do erro que foi cometido ao se trocar o dia 9 de janeiro pelo dia 10 de janeiro como data do seu nascimento. O juiz, ouvindo a declaração do pai de Thiago e sua vó, declarou permitida a retificação do registro civil.
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O primeiro aniversário de Thiago aconteceu aos 44 anos de idade.
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O Impulso do Gato (Ilustração: Yhuri Cruz) + Pintura de Van Gogh com Motion Blur.
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