Primeira bloghistória dividida em, no máximo, três capítulos do Blog "Do Pensante".
CAP. 3 Era quase fim de ano. Dezembro. Sábado. Noite quente e abafada, parecia que ia chover. Os dois, o homem que espirrava quando sentia felicidade e a menina que cheirava exatamente como felicidade para o homem ao lado, estavam sentados juntos no sofá, com o ventilador girando e ventilando seus corpos. Eles tentavam escolher o que ver na tevê. Eram tantas opções e nenhum deles queria palpitar sobre alguma coisa, tinham medo de escolher programas que o outro não gostava. Eles não tinham gostos exatamente parecidos. Ela sempre gostava de séries policiais e documentários sobre História da humanidade. Ele gostava mais de desenho animado mesmo. Mas, ainda assim, a convivência era pacífica.
Era engraçado observar como o homem continuava a espirrar continuamente na presença da moça, sem nem pensar em tampar o nariz, depois de um ano. A seqüência de sete espirros não existia mais. Existia simplesmente espirros sucessivos. Era estranho perceber que a moça tinha realmente se acostumado aos espasmos nasais constantes, também. É que quando nós entendemos e aceitamos as pessoas, nós passamos a nos adaptar a certas situações.
Bem, já era tarde e o clima estava começando a esfriar. Não estava mais abafado. O vento batia relativamente forte na janela do apartamento do homem e, agora, o casal estava enroscado um no outro. As peles pareciam acesas, transmitindo ondas de calor em simultâneo com os olhares repletos de bons sentimentos. As cascas que cobriam o pecado começavam a cair lentamente, pouco a pouco, sobre o chão que lembrava o mar de Arraial do Cabo. Era límpido e refletia as duas almas que estavam transcendendo. A cadência involuntária, a ligação com o divino do outro, com a parte secreta que no outro existe e que nos é estranha, mas que sonhamos em descobrir naqueles que amamos com ardor. Toda a névoa de indecisão sumia e o céu fiou azul marinho. Sem estrelas, mas ainda assim magnífico. Do quente ao frio, a noite abafada virou noite chuvosa de amor sem fim.
Assim, amanheceu o dia de domingo, sem sol aparente e com nuvens carregadas para as chuvas do meio do dia. "Eu te amo, 'Atchim'.", ela falou. ATCHIM ! " Eu te amo também, kiwi.", ele respondeu. Eles acordaram e foram preparar o café da manhã. Era simples, pão e café com leite para ela, e pão e chocolate quente para ele. Porém não tinha pão fresco. Pergunta: quem iria comprar pão? Preguiça era a característica que ambos partilhavam. Depois de tirarem 3 vezes par ou ímpar, ele ganhou. Lá foi ela então comprar pãezinhos fofos e quentes na padaria que ficava na quadra ao lado. Era a ultima vez que eles se veriam.
Não me pergunte o que aconteceu. Eu, particularmente, fico surpreso ao saber que a moça sumiu indo comprar pão. Mas é a verdade. Ela estranhamente demorava a voltar com o saco de cor parda repleto com pães dourados e crocantes, e ele foi verificar o porquê. Não existe motivos, pelo menos ele não os achou. Ligou para todos os números de telefone possíveis, foi às casas da familia, amigos, conhecidos, mas nenhum sinal da felicidade. Ele tinha medo e pânico de não saber onde ela estava. Ele a procurou por dias e semanas. E a cada 'não' que recebia, a cada sombra que não achava, seu mundo ia perdendo o brilho. A cada noite sem sua voz dizendo "Boa noite.", a cada dia sem o sorriso que tanto gostava, sua vida ia perdendo o sentido. E, principalmente, cada dia sem aquele cheiro, o fazia morrer.
O homem que espirrava quando sentia cheiros gostosos que a vida podia nos dar, continuou a viver. Mas a partir daquele domingo, sua vida mudou, seu jeito de ser mudou, o mundo, para ele, mudou. Foi a partir daquele dia, em que o melhor cheiro de sua vida se esvaiu no meio do odor de mundo, no dia em que Ela evaporou sem dizer para onde ia, foi nesse domingo chuvoso de dezembro em que o homem se curou de sua síndrome.
Não havia explicações científicas para a cura de sua doença, a única hipótese que o próprio homem conseguiu pensar foi que nada no mundo poderia
cheirar melhor do que Ela. Nada no mundo poderia
ser melhor do que ela. Não existiam odores que ele considerava tão bons quanto era o dela. E como ela se foi, assim se foi tudo que ele reconhecia como bom. O que existia no mundo agora era o resto, e o resto nunca é satisfatório.
Assim, o homem seguiu em sua caminhada inodora pela vida afora. Mas esperem...
"ATCHIIIIM!", ele espirra. Era só um espirro comum ou era algum resquício molhado da Paz? Confesso que nem eu sei.
FIM.
.O Pensante.