Eu não lembro a série em que eu estava quando eu conheci aquele menino. Até porque as séries escolares viraram "anos" e já não sei me localizar no tempo, nas velhas memórias turvas da minha consciência. Apenas lembro que éramos crianças entre 10 e 12 anos e que ele não era um garoto comum. Seu nome era Bruno e ele usava grandes óculos retangulares. Eu não havia reparado na sua existência até ele me sorrir durante um jogo de futebol. As aulas de educação física eram sempre um desgosto, uma jornada no deserto, que eu tinha que percorrer de uma a duas vezes por semana. Eu não tinha capacidade de correr, tinha reflexos duvidosos e a bola era quadrada para meus pés. Naquela tarde, Bruno sorriu por compaixão à minha incapacidade mecânica para driblar um menino que possuía talento para futebol. O óbvio: perdi a bola em 2 segundos. Eu deixei minha cabeça cair, em desânimo, e quando olhei para o lado, lá estava Bruno com seus dentes brancos e tortos, com seus quatro-olhos comprimidos, e com as orelhas estendidas devido ao sorriso terno. A partir daquele momento, eu o tive como amigo. Era a época da vida em que os amigos se faziam rapidamente, com um sorriso. Boa época.
Bruno era uma criança magra, de longos braços e pernas finas. Sua pele era morena e reluzente, assim como seus cabelos, lisos de cor castanha. Os olhos, não lembro ao certo, mas algo me diz que eram cor de mel. Depois daquele sorriso sincero na educação física, ele se juntou ao meu grupo de amigos, composto pelo Guilherme, pelo Bruno Soares - a quem chamarei de Soares -, por mim e, a partir daquele momento, pelo novo Bruno. Ser membro de um grupo sempre foi, durante toda a história da humanidade, uma forma de se proteger dos perigos da natureza humana, selvagem e imprevisível. Sendo uma criança, ter um grupinho, era a forma mais fácil de se proteger dos bullyings que nos eram impostos por crianças que não valem a menção, mas que sempre serão aqueles de memórias mais nítidas. Ter esses amigos como companheiros, e outros que fiz no caminho, me levaram de uma série a outra até onde estou agora.
Enfim, Bruno não me era comum. Acho que foi a primeira vez que reconheci o que era malícia, ainda que não havia ideia da existência dessa palavra: chamávamos de esperteza. Eram várias as situações em que ele conseguia driblar os professores ou dar a volta nos próprios colegas de classe, seja nas palavras mentirosas seja com choros forçados. Tê-lo em nosso grupo era importante, ele era um amigo com habilidades incríveis, ele falava com a clareza e a dicção dos nossos professores, mexia os braços, fazia gestos, sorria e olhava nos olhos. Nunca havia conhecido outro como ele. Foi a primeira pessoa que eu de fato convivi, mas que nunca tive plena confiança na sua amizade. Hoje em dia, é o que mais encontro.
Eram tempos em que amigos de escola eram amigos de apartamentos, de trabalhos de casa, de almoços, de brincadeiras; quando as "tias" e os "tios" eram muitos, quando lanchávamos pão com manteiga e presunto toda semana em uma casa diferente. Nesse tempo passado, numa noite na casa do Soares, estávamos numa festa de família e amigos, com muitas crianças correndo pelo salão, crianças comuns à nossa escola, que nos conheciam e que nós conhecíamos, entre eles os chamados 'bagunceiros'. Eu, Guilherme e Soares estávamos sozinhos na varanda conversando sobre a invasão da casa por
esses meninos indesejáveis. Não entendíamos a razão da mãe e do pai de Soares terem convidado as famílias dessas crianças, sem ao menos terem perguntado ao filho se seria divertido chamá-los. Mãe e pai pensam que criança não sente raiva, que não possui mágoa ou ressentimentos, que não tem inimigos; esquecem-se de que os sentimentos são ainda mais latentes quando os vivenciamos na infância, quando temos contato com a raiva ou a angústia pela primeira vez. As crianças são virgens de sentimentos.
A varanda estava com a lâmpada apagada, mas a festa no fundo da garagem iluminava parcialmente nossas faces. Conversávamos e ríamos entre nós, até que ouvimos passos rápidos vindo até a varanda, vários pezinhos se aproximavam, como uma manada de pequenos cabritos. Os bagunceiros estavam todos ali, nos encarando, fazendo piadinhas sobre nós, chamando-nos de "viadinhos", de "bichinhas", ameaçando contar aos nossos pais que estávamos escondidos porque éramos namorados um do outro, gritando que o Soares era um boiola, que o Guilherme era uma gazela e que eu era um "gayzinho". Soares tentou correr até seus pais, para contar tudo o que estava acontecendo mas o Rafael, um bagunceiro magricela, de pele escura e olhos esbugalhados, o pegou pela cintura com a ajuda do Gabriel, um menino loiro, de olhos pretos, com uma cicatriz na testa. Eles nos jogaram num canto da varanda, onde não tínhamos como correr e se aproximaram até seus pés encontrarem os nossos, formando uma barreira. E começaram a chutar nossos tornozelos. Sete contra três, catorze contra seis. Tentávamos nos defender também com as mãos, mas a diferença era injusta.
Nenhum grito era pronunciado, só o barulho dos solavancos e dos pés contra as canelas e contra as paredes, eram ouvidos. No meio de tantos movimentos, eu vi o Bruno, longe da confusão, mas olhando tudo acontecer, por detrás dos seus óculos retangulares e de lentes grossas. A uma boa distância de nós, com as mãos juntas sobre a barriga, com os cabelos sobre a testa e com seus olhos mel, refletindo o que via. Não conseguia identificar um sentimento, se era medo, raiva, graça; ele não expressava um mísero sentimento, até que vi seu sorriso se abrir quando o Guilherme levou um sorrateiro soco na barriga. Um sorriso diferente daquele que eu havia recebido dele na catástrofe futebolística da educação física. Um sorriso angular. Cessou em segundos. A briga surda havia terminado; eu, Guilherme e Soares, sentados no chão, cansados. Nem os bagunceiros nem Bruno estavam mais ali.
No fim da festa, quando todos já iam embora e poucos convidados permaneciam na casa de Soares, Bruno se aproximou, com um olhar tímido. Disse que estava com medo e pediu desculpas por não ter ajudado. Senti o arpão da traição em suas palavras dissimuladas. Desconsiderei suas desculpas completamente.
Não era alguém que eu podia classificar naquela época pueril, onde rótulos são identidades. Eu não conseguia prever como ele enfrentaria certas situações, muito menos como ele se sentia em relação a mim. Era uma pessoa duvidosa, ambígua. Um vazio, ou algo bem transparente. Desde aquela noite, não nos falamos mais. Ele havia saído do grupo e juntou-se a outro. Não sei se foi um processo natural ou uma transição ressentida. O tempo ameniza os rituais da infância. De qualquer forma, ele não deixou um espaço vazio, pois não conseguíamos enxergá-lo, de fato, mesmo quando estava entre nós.
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