sábado, 29 de outubro de 2011

As Vozes Previsíveis.

"A luz cega o sempre." Foto: Yhuri Cruz.
As vozes percorriam quilômetros em ligeiros segundos; nenhum ouvido conseguia ouvir, além dos nossos. As mesmas vozes que um dia se calaram para que o amor silenciasse de vez, para sempre. Mas o sempre é tão agora como foi o ontem, é deficiente em sua magnitude. O sempre é o nada e o tudo, é o horizonte de um nascer do sol, desfocado, sem linhas. A luz cega o sempre. A luz. As vozes são tão familiares que o nunca é até possível de ser tocado.

*

- O que você prefere que eu vista amanhã, vestido ou calça? - perguntou a mulher, do outro lado da linha.

- Eu prefiro que você me surpreenda, amanhã - disse o homem, em resposta. Sua mente estava perto de coisas alheias àquela mulher naquele instante.

- Será que eu consigo te surpreender ainda? - ela estava insegura de si mesma. Esperava que ele decidisse e retirasse dela uma das várias preocupações de um reencontro perfeito.

- Ou melhor, eu prefiro você pelada - o homem voltava consciente de si à conversa.

- Eu sabia! Eu tinha certeza que você ia me soltar essa! - exclamou a mulher que ria em graves sons.

- O quão previsível eu posso ser, afinal? - perguntou-lhe. - O quão previsível são os homens, além de tudo! - refraseou.

- Não importa, de qualquer maneira, o quão transparente você seja. O que importa é que o amanhã seja o tempo mais negro de todos os nossos períodos. Que não haja vidente capaz de prever nossas ações ou nossos destinos. Que Deus durma até mais tarde. Que o diabo encontre outros pecadores para atazanar. Porque o que eu quero é que não tenha previsão, esse nosso novo tempo. Inundações virão, meu homem, não tenha dúvidas. Elas sempre vem para os verdadeiros amores, para aqueles que persistem e vão até o findo fim. Que nos engulam, as águas pesadas da angústia! Que nos levem de maré em maré até o tal horizonte que você me falava, daquele do nascer do sol, sem linhas. Que nós possamos ser a linha desse horizonte. Duas pessoas à deriva, boiando, até que a luz nos cegue.

O homem a ouviu respirando após o longo monólogo. Em seguida, o ar é inspirado ruidosamente e ela o questiona:

E eu? O quão previsível sou?
-A mais previsível de todas, minha mulher. Adorável e previsível como uma tragédia shakespeariana.
- Que bom, meu homem, que bom.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Bruno.

Eu não lembro a série em que eu estava quando eu conheci aquele menino. Até porque as séries escolares viraram "anos" e já não sei me localizar no tempo, nas velhas memórias turvas da minha consciência. Apenas lembro que éramos crianças entre 10 e 12 anos e que ele não era um garoto comum. Seu nome era Bruno e ele usava grandes óculos retangulares. Eu não havia reparado na sua existência até ele me sorrir durante um jogo de futebol. As aulas de educação física eram sempre um desgosto, uma jornada no deserto, que eu tinha que percorrer de uma a duas vezes por semana. Eu não tinha capacidade de correr, tinha reflexos duvidosos e a bola era quadrada para meus pés. Naquela tarde, Bruno sorriu por compaixão à minha incapacidade mecânica para driblar um menino que possuía talento para futebol. O óbvio: perdi a bola em 2 segundos. Eu deixei minha cabeça cair, em desânimo, e quando olhei para o lado, lá estava Bruno com seus dentes brancos e tortos, com seus quatro-olhos comprimidos, e com as orelhas estendidas devido ao sorriso terno. A partir daquele momento, eu o tive como amigo. Era a época da vida em que os amigos se faziam rapidamente, com um sorriso. Boa época.

Bruno era uma criança magra, de longos braços e pernas finas. Sua pele era morena e reluzente, assim como seus cabelos, lisos de cor castanha. Os olhos, não lembro ao certo, mas algo me diz que eram cor de mel. Depois daquele sorriso sincero na educação física, ele se juntou ao meu grupo de amigos, composto pelo Guilherme, pelo Bruno Soares - a quem chamarei de Soares -, por mim e, a partir daquele momento, pelo novo Bruno. Ser membro de um grupo sempre foi, durante toda a história da humanidade, uma forma de se proteger dos perigos da natureza humana, selvagem e imprevisível. Sendo uma criança, ter um grupinho, era a forma mais fácil de se proteger dos bullyings que nos eram impostos por crianças que não valem a menção, mas que sempre serão aqueles de memórias mais nítidas. Ter esses amigos como companheiros, e outros que fiz no caminho, me levaram de uma série a outra até onde estou agora.

Enfim, Bruno não me era comum. Acho que foi a primeira vez que reconheci o que era malícia, ainda que não havia ideia da existência dessa palavra: chamávamos de esperteza. Eram várias as situações em que ele conseguia driblar os professores ou dar a volta nos próprios colegas de classe, seja nas palavras mentirosas seja com choros forçados. Tê-lo em nosso grupo era importante, ele era um amigo com habilidades incríveis, ele falava com a clareza e a dicção dos nossos professores, mexia os braços, fazia gestos, sorria e olhava nos olhos. Nunca havia conhecido outro como ele. Foi a primeira pessoa que eu de fato convivi, mas que nunca tive plena confiança na sua amizade. Hoje em dia, é o que mais encontro.

Eram tempos em que amigos de escola eram amigos de apartamentos, de trabalhos de casa, de almoços, de brincadeiras; quando as "tias" e os "tios" eram muitos, quando lanchávamos pão com manteiga e presunto toda semana em uma casa diferente. Nesse tempo passado, numa noite na casa do Soares, estávamos numa festa de família e amigos, com muitas crianças correndo pelo salão, crianças comuns à nossa escola, que nos conheciam e que nós conhecíamos, entre eles os chamados 'bagunceiros'. Eu, Guilherme e Soares estávamos sozinhos na varanda conversando sobre a invasão da casa por esses meninos indesejáveis. Não entendíamos a razão da mãe e do pai de Soares terem convidado as famílias dessas crianças, sem ao menos terem perguntado ao filho se seria divertido chamá-los. Mãe e pai pensam que criança não sente raiva, que não possui mágoa ou ressentimentos, que não tem inimigos; esquecem-se de que os sentimentos são ainda mais latentes quando os vivenciamos na infância, quando temos contato com a raiva ou a angústia pela primeira vez. As crianças são virgens de sentimentos.

A varanda estava com a lâmpada apagada, mas a festa no fundo da garagem iluminava parcialmente nossas faces. Conversávamos e ríamos entre nós, até que ouvimos passos rápidos vindo até a varanda, vários pezinhos se aproximavam, como uma manada de pequenos cabritos. Os bagunceiros estavam todos ali, nos encarando, fazendo piadinhas sobre nós, chamando-nos de "viadinhos", de "bichinhas", ameaçando contar aos nossos pais que estávamos escondidos porque éramos namorados um do outro, gritando que o Soares era um boiola, que o Guilherme era uma gazela e que eu era um "gayzinho". Soares tentou correr até seus pais, para contar tudo o que estava acontecendo mas o Rafael, um bagunceiro magricela, de pele escura e olhos esbugalhados, o pegou pela cintura com a ajuda do Gabriel, um menino loiro, de olhos pretos, com uma cicatriz na testa. Eles nos jogaram num canto da varanda, onde não tínhamos como correr e se aproximaram até seus pés encontrarem os nossos, formando uma barreira. E começaram a chutar nossos tornozelos. Sete contra três, catorze contra seis. Tentávamos nos defender também com as mãos, mas a diferença era injusta.

Nenhum grito era pronunciado, só o barulho dos solavancos e dos pés contra as canelas e contra as paredes, eram ouvidos. No meio de tantos movimentos, eu vi o Bruno, longe da confusão, mas olhando tudo acontecer, por detrás dos seus óculos retangulares e de lentes grossas. A uma boa distância de nós, com as mãos juntas sobre a barriga, com os cabelos sobre a testa e com seus olhos mel, refletindo o que via. Não conseguia identificar um sentimento, se era medo, raiva, graça; ele não expressava um mísero sentimento, até que vi seu sorriso se abrir quando o Guilherme levou um sorrateiro soco na barriga. Um sorriso diferente daquele que eu havia recebido dele na catástrofe futebolística da educação física. Um sorriso angular. Cessou em segundos. A briga surda havia terminado; eu, Guilherme e Soares, sentados no chão, cansados. Nem os bagunceiros nem Bruno estavam mais ali.

No fim da festa, quando todos já iam embora e poucos convidados permaneciam na casa de Soares, Bruno se aproximou, com um olhar tímido. Disse que estava com medo e pediu desculpas por não ter ajudado. Senti o arpão da traição em suas palavras dissimuladas. Desconsiderei suas desculpas completamente.

Não era alguém que eu podia classificar naquela época pueril, onde rótulos são identidades. Eu não conseguia prever como ele enfrentaria certas situações, muito menos como ele se sentia em relação a mim. Era uma pessoa duvidosa, ambígua. Um vazio, ou algo bem transparente. Desde aquela noite, não nos falamos mais. Ele havia saído do grupo e juntou-se a outro. Não sei se foi um processo natural ou uma transição ressentida. O tempo ameniza os rituais da infância. De qualquer forma, ele não deixou um espaço vazio, pois não conseguíamos enxergá-lo, de fato, mesmo quando estava entre nós.

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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Grão de Giz.

Grão de Giz.

Eu trabalho na noite
No açoite e nas estrelas
Acima do solo em ruas estreitas
Dou o gozo e cedo colo.

Até que as máscaras tombam
Se quebram, e o choro
Que corre sem íris do olho
Vislumbrado por um sonho.

Aí, então
O vão é são
O sim é não
O Deus, o cão.

As paredes derretem
Eu peço e arrepio
O bolso queima em vazio
Agradecidos, sorriem.

De volta ao X
A vida, a correia
Meus pés na areia
Do mar de giz e
Asfalto.

(Yhuri Cruz)
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domingo, 16 de outubro de 2011

Horário de Verão.

Completude de um verão. (Ilustração: Yhuri Cruz)





Horário de verão
  
A hora que passou
Não percebi.
Estava em sonhos,
Mergulhado em ti.
Os ponteiros correram a volta,
Quatro ângulos retos. 
Nós, em obtuso.
Enfim, completos.
(...) 
Porém, incertos. 

(Yhuri Cruz)

domingo, 2 de outubro de 2011

Sobre o cemitério e a Tia Jura.

O Cemitério do Caju se aproximou e subitamente paramos de cantar.

- Eu nunca fui a um enterro. Nem sei ao menos como é um cemitério por dentro. Mas eu amo observar esses túmulos por fora. As estátuas de anjos com longos cabelos, crucifixos gigantes, cristos e santos. Isso me encanta.  - disse mirando os muros cinzas, observando o topo dos túmulos e mausoléus que transpareciam.

- Por que você nunca entrou? Você não passa por aqui todos os dias? Eu mesma já fui a vários enterros. Existem alguns cemitérios bem impressionantes, outros são tão feios como cracolândias. - a brisa forte fazia com que seus cabelos se prendessem a boca. Conseguia transformar o fúnebre em vital. - Vamos entrar para vermos como é? - convidou-me de repente.

- Não, hoje não. Um dia vamos.

- O senhorito tem medo de encarar a morte? - ria com seus grandes dentes brancos enquanto as mãos batiam palmas em deboche. - Vamos lá, estou te convidando!

- Já passamos por ele, não adianta eu querer voltar agora. - disfarcei. O carro já estava a alguns metros a frente da entrada e o retorno era complicado. - Minha tia morreu esses dias. O enterro aconteceu aí dentro.

- Eu a conhecia? - ela me encarava, procurando algum tipo de sentimento represado, alguma mágoa, alguma tristeza ou saudade. Não sei o que encontrara.

- Você não lembra da tia Jura? - braços no volante, mirei seus olhos. Estavam apertados, tentavam espremer alguma memória para fora. - Era uma tia pequena, morena, cabelos cacheados, sempre de vestido... Não se lembra? Dançava e pulava todas as festas; esquentava a cabeça por besteiras.

- Tenho uma mera impressão dela.

- Lembra de uma festa na casa dos meus avós? Estávamos no quintal, junto com a família, conversando e rindo com as crianças. De repente escutamos um "puta que o pariu!" bem sonoro que vinha lá da esquina? Lembra disso? - ríamos com a lembrança vaga. Tia jura começava a tomar silhuetas concretas. - Um "puta que o pariu!" bem alto que invadia o quintal. Lembra que minha vó saiu correndo pelo portão desesperada pensando que alguém tivesse sido assaltado? E era tia Jura que tropeçava seu salto agulha nos buracos do paralelepípedo!

- Ah! Lembro sim. - finalmente tia Jura vinha a sua cabeça: 1,60 metros de altura, pele morena, cabelos castanhos cacheados até o meio das costas, rosto triangular e nariz arrebitado. Vocabulário sujo, pernas finas  e lisas, seios salientes: não recomendada para menores de 18 anos. - Que figura!

- Era, realmente. Eu gostava muito dela. Tinha uma alegria muito contagiante, sincera. Minha mãe comentou que seu enterro estava cheio de amigos e familiares.

- Mas você não foi. - e eu a respondi: "é..". - Está arrependido?

- Sei lá. Eu nunca tive vontade de ir a enterros ou a cemitérios. Criei essa barreira desde criança; sempre achei o clima pesado, e tinha medo de sobrecarregar meu espírito. Hoje, já tenho a curiosidade de saber como que um cemitério é por dentro, porque por fora parece ser algo tão sublime, um espaço quase artístico.   O enterro da tia Jura teria sido uma boa oportunidade de confirmar essa minha romantização do fúnebre. Além dela ter sido uma pessoa marcante na minha vida, foi uma pessoa que me ajudou algumas vezes, sempre com uma boa dose de piada e sacanagem. Perdi essa oportunidade. - minha expressão murchou.

- Você perdeu a oportunidade de vê-la partindo, é verdade. Mas ainda pode muito bem satisfazer sua curiosidade. Tenho certeza que ela adoraria ser visitada um dia qualquer. Ficaria ainda mais feliz. - ela tinha habilidade para criar alternativas de felicidade.

- Espero que a tenham enterrado de salto agulha... - e com sorrisos abertos prosseguimos a viagem.

Boa viagem, tia Jura. (Ilustração: Yhuri Cruz) Clique para ampliar.

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sábado, 1 de outubro de 2011

Ecstasy.

Ecstasy. (Ilustração: Yhuri Cruz ) Clique e veja no tamanho real. 
Sentados dentro do meu corsa 94 vermelho. A pintura fosca, o painel não reluzia, os bancos revestidos de um tecido já envelhecido, desfiado. Eu e ela, voltando de uma noite do centro do Rio de Janeiro, com as janelas escancaradas e o vento fresco rebatendo nos cílios e sombrancelhas: 90 quilômetros por hora e nenhuma melancolia nos ultrapassava. A Avenida Brasil, um dos grandes corredores do Rio, tomava quase 70% do caminho de volta, reto e liso, as luas da Terra brilhavam como rubis no céu da Lucy. Cantarolávamos músicas que nem ao menos soavam nas rádios, tirando o fato de o carro em si não ter espaço para esse tipo de aparelho: de qualquer modo, não havia silêncio entre nossos corpos. Lá estava ela, de vestido florido, azul marinho e vermelho; seus cabelos longos e castanhos levados pela brisa forte para a parte traseira do carro; eu contemplando sua alma enquanto acelerava. Suas mãos brancas dançavam acima de sua cabeça, frequentemente fazendo batuques no teto do carro e nossos corpos se dobravam até uma nova música florescer de nossas mentes, sem sementes. O balanço das cabeças, os sorrisos desavergonhados, as vozes roucas em um catastrófico uníssono, os óculos wayfarer vibrando sem cessar...  

- Hey! Qual a velocidade da alegria?! - a boca cheia de dentes abria o sorriso branco, enquantos as mãos simulavam ondas do mar no lado de fora do carro. Retrato inesquecível.
- O quão rápido os pássaros podem voar? Abra as asas e sinta a corrente!

Ecstasy correndo junto das hemácias, o oxigênio visível, as esferas inquietas em zigue-zague. Monet é meu anjo da guarda, sempre sentado no banco de trás do corsa. A musa e o mestre! Que noite impressionista!(...)
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