- Eu nunca fui a um enterro. Nem sei ao menos como é um cemitério por dentro. Mas eu amo observar esses túmulos por fora. As estátuas de anjos com longos cabelos, crucifixos gigantes, cristos e santos. Isso me encanta. - disse mirando os muros cinzas, observando o topo dos túmulos e mausoléus que transpareciam.
- Por que você nunca entrou? Você não passa por aqui todos os dias? Eu mesma já fui a vários enterros. Existem alguns cemitérios bem impressionantes, outros são tão feios como cracolândias. - a brisa forte fazia com que seus cabelos se prendessem a boca. Conseguia transformar o fúnebre em vital. - Vamos entrar para vermos como é? - convidou-me de repente.
- Não, hoje não. Um dia vamos.
- O senhorito tem medo de encarar a morte? - ria com seus grandes dentes brancos enquanto as mãos batiam palmas em deboche. - Vamos lá, estou te convidando!
- Já passamos por ele, não adianta eu querer voltar agora. - disfarcei. O carro já estava a alguns metros a frente da entrada e o retorno era complicado. - Minha tia morreu esses dias. O enterro aconteceu aí dentro.
- Eu a conhecia? - ela me encarava, procurando algum tipo de sentimento represado, alguma mágoa, alguma tristeza ou saudade. Não sei o que encontrara.
- Você não lembra da tia Jura? - braços no volante, mirei seus olhos. Estavam apertados, tentavam espremer alguma memória para fora. - Era uma tia pequena, morena, cabelos cacheados, sempre de vestido... Não se lembra? Dançava e pulava todas as festas; esquentava a cabeça por besteiras.
- Tenho uma mera impressão dela.
- Lembra de uma festa na casa dos meus avós? Estávamos no quintal, junto com a família, conversando e rindo com as crianças. De repente escutamos um "puta que o pariu!" bem sonoro que vinha lá da esquina? Lembra disso? - ríamos com a lembrança vaga. Tia jura começava a tomar silhuetas concretas. - Um "puta que o pariu!" bem alto que invadia o quintal. Lembra que minha vó saiu correndo pelo portão desesperada pensando que alguém tivesse sido assaltado? E era tia Jura que tropeçava seu salto agulha nos buracos do paralelepípedo!
- Ah! Lembro sim. - finalmente tia Jura vinha a sua cabeça: 1,60 metros de altura, pele morena, cabelos castanhos cacheados até o meio das costas, rosto triangular e nariz arrebitado. Vocabulário sujo, pernas finas e lisas, seios salientes: não recomendada para menores de 18 anos. - Que figura!
- Era, realmente. Eu gostava muito dela. Tinha uma alegria muito contagiante, sincera. Minha mãe comentou que seu enterro estava cheio de amigos e familiares.
- Mas você não foi. - e eu a respondi: "é..". - Está arrependido?
- Sei lá. Eu nunca tive vontade de ir a enterros ou a cemitérios. Criei essa barreira desde criança; sempre achei o clima pesado, e tinha medo de sobrecarregar meu espírito. Hoje, já tenho a curiosidade de saber como que um cemitério é por dentro, porque por fora parece ser algo tão sublime, um espaço quase artístico. O enterro da tia Jura teria sido uma boa oportunidade de confirmar essa minha romantização do fúnebre. Além dela ter sido uma pessoa marcante na minha vida, foi uma pessoa que me ajudou algumas vezes, sempre com uma boa dose de piada e sacanagem. Perdi essa oportunidade. - minha expressão murchou.
- Você perdeu a oportunidade de vê-la partindo, é verdade. Mas ainda pode muito bem satisfazer sua curiosidade. Tenho certeza que ela adoraria ser visitada um dia qualquer. Ficaria ainda mais feliz. - ela tinha habilidade para criar alternativas de felicidade.
- Espero que a tenham enterrado de salto agulha... - e com sorrisos abertos prosseguimos a viagem.
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Boa viagem, tia Jura. (Ilustração: Yhuri Cruz) Clique para ampliar. |
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Gostei camarada.
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