terça-feira, 23 de outubro de 2012

Corpo em tinta.


Traumas, Yhuri Cruz.
(Tinta à Óleo)
eu pinto o que há em mim.
e existem tantas coisas que eu não consigo transmitir.
nuances, sombras, luzes.
o que mais me excita na pintura não é a mensagem, mas a materialidade da tinta.
essa materialidade meio-sólida meio-líquida é o que me define como eu (como artista).
minhas pinturas, por mais modestas que sejam, devem ter textura de tinta.
é algo que eu propus a mim mesmo, a textura é o que me representa.
a materialidade, a concretude das cores.
o meu desejo dramático de me transportar de corpo e alma para dentro de cada tela.



quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A Massa de Pizza.

Numa noite de primavera um grupo de pessoas seguia o caminho para casa dentro de um ônibus. Todos os bancos ocupados e poucos espaços livres no estreito corredor. Todos balançavam juntos, saltavam juntos, freavam juntos: como uma grande massa de pizza sendo preparada. Uma massa calada.

Ouve-se uma gritaria na frente do ônibus. Um homem reclama com o motorista. O condutor não havia parado no ponto, mas sim, muitos metros a frente, e o homem, já de idade, teve de correr atrás do ônibus, ofegante. Enquanto o passageiro revoltado dizia seus desabafos ao motorista, o silêncio do ônibus transformou-se em um grande cochichar, sútil, sem vozes altas. 

O homem não parava de esbravejar o quão revoltante era aquela situação. "Se não gosta de trabalhar, de pegar passageiro, mude de emprego!", dizia. 

O cochicho coletivo perdeu lugar para o silêncio em poucos minutos. A única voz restante era a do homem, que se sentia injustiçado e profundamente sozinho.

Aquele ruído contínuo de revolta gerou um incômodo e um novo cochichar surgiu. Olhares e caras feias eram trocadas no ambiente. Até que o ônibus parou e praticamente todos os passageiros indicaram, com os mais de 70 dedos, a porta traseira, de saída, para o homem. 

O homem desce do ônibus espantado. O ônibus segue seu caminho. Em silêncio.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Anuviado.

Olhou-se no espelho e encarou-se por um longo tempo. Tentando sorrir, mas sem êxito. Os dentes cerravam e os lábios uniam-se. Lá estava seu reflexo nu dentro do vidro. Levantou uma das pernas o mais alto que conseguia, mas perdeu o equilíbrio segundos depois. Infectou seu estômago com algo podre que comera na esquina e emagrecera 5 quilos. Sua magreza refletia seu interior. Como ser tão ignorante? A sua nudez não o incomodava mais, já fora o tempo que a insegurança perante o seu corpo o confundia. Mesmo assim questionou-se sobre o material que revestia seu esqueleto. Os músculos sumiram e só restou uma pele composta por células de dúvida. Aproximou seu rosto ao espelho e tentou um novo sorriso, mas pegou-se olhando para seus próprios olhos. Eram negros e estranhos, assim como sua pessoa. As tímidas olheiras tornavam-se visíveis. Quem tem pouca olheira é um péssimo observador? Encostou as mãos no espelho e sujou o próprio reflexo. Desenhou dois olhos e uma boca que gritava. Gritava mas não se ouvia nada. Bateu no vidro de leve e perguntou-se se no mundo de dentro do espelho eles ouviriam o grito. Daí grudou toda a face contra o vidro, esfregando a pele sebosa, espalhando marcas e silhuetas por toda parte. Quis mais. Esfregou todo o corpo ao longo do espelho. Fazia isso de olhos arregalados e via-se do outro lado do mundo como uma serpente que recebia um eletrochoque e rebatia-se contra o chão. Ficara repentinamente excitado, os músculos retesaram-se. Silhuetas disformes, perfis caleidoscópicos, mãos sinistramente alongadas, rastros de suor e líquido escorriam. Afastou-se finalmente e encarou o resultado da catarse. O vidro metalizado que antes dava em troca o reflexo perfeito estava coberto por suor e gordura corporal. Não conseguia identificar-se mais. A não ser os pés que refletiam-se na parte inferior, menos suja do espelho. Ele se aproximou e passou a mão suja em todas as partes ainda desanuviadas. Pronto. Agora isso reflete a realidade.


Monet me anuvia.
 (Yhuri Cruz + Bahnhof Saint Lazare in Paris, de Monet)

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sexta-feira, 15 de junho de 2012

Assim é se lhe parece.


Hão de chiar, os outros. Afinal, esse é o papel deles. A platéia sempre aplaude no fim da peça, mesmo quando não entende uma palavra do roteiro. É a beleza do teatro: a intimidade fictícia. Ficamos expostos ao texto de forma tão íntima, mas ao mesmo tempo, o que sabemos perto dos próprios dramaturgos? O que sabemos sobre o processo de ensaios da companhia? Achamos que temos controle sobre o que vimos, quando nem ao menos notamos o gesto despercebido que é repleto de significado. Mas os outros hão de chiar. Assim, pensem o que quiserem, os outros. Como já dizia o grande Pirandello: assim é se lhe parece. 

*

domingo, 10 de junho de 2012

Faíscas.

Faísca. (Ilustração: Yhuri Cruz)
Um homem e uma mulher deitados na grama de um parque conversam enquanto olham para o céu. O azul lá em cima perdia lugar para algumas nuvens cinzas, finas e possivelmente inofensivas. O homem começou a falar:

- Eu realmente não sei como nos conhecemos, você lembra? Quando vi, já éramos amores. E agora, estamos nesse parque. O tempo cega os olhos. Será que perdemos de vista tudo que explica nossa jornada?

- Não seja exagerado. Eu sei exatamente como cheguei aqui, neste momento, neste parque, neste domingo. Eu conheço todos os sacrifícios que fiz para ter esse domingo e para ter você.

- Não estou sendo exagerado. Claro que sei como tudo aconteceu. Só que nada aconteceu por que você quis. Entende? O tempo e o acaso são quem decidem. E ao mesmo tempo, quando damos conta disso, percebemos que não temos controle das nossas próprias vidas.

- (...). 


A mulher ficou calada por minutos inteiros. O céu parecia um quadro de fundo azul pintado com delicadeza de tons de branco e cinza. Cada vez mais a tinta azul ia dando espaço a um relevo enevoado, misturado a tons pastéis rosa, amarelo, e lilás. O homem sentiu um incômodo e perguntou:

- Tudo bem?

- Só me pergunto se toda nossa relação aconteceu por culpa do tempo e do acaso ou se você possui uma parcela dessa decisão.

- Não seja boba. Não falo da gente, mas da vida.

- E qual a diferença? Não sou boba. Você é um homem que não tem controle sobre seus próprios atos? Isso me soa tão covarde. Você não pode simplesmente culpar o acaso de você ter chegado aqui, neste parque. Isso torna toda a humanidade gado de Deus ou seja lá o que for. O ser humano não possui autonomia?

Um silêncio incômodo deitou entre o casal e fez soprar um vento quente. De repente um clarão se fez no horizonte, acompanhado de um som estrondante que fez o casal levantar-se. O céu por segundos tornou-se vermelho e a pintura uma vez de tons frios, tornou-se latina e quente. Uma fumaça negra subia por trás de um bosque do parque e o casal se perguntava o que havia explodido.

De dentro do bosque um homem vinha correndo com duas crianças. Carregava-as pelos braços, penduradas, flutuando violentamente pelo ar. Estavam visivelmente machucadas e, pelo balançar desumano de seus pés, estavam mortas. Vinha gritando:

- Foi só uma faísca, eu juro, foi só uma faísca!

O casal descobriu que um isqueiro nas mãos de uma das crianças havia feito explodir algum duto de gás perto do parque. A mulher chorava ao ver os pequenos inofensivos mortos e perguntou ao seu companheiro:

- Isso soa como acaso para você? Isso pra mim é uma decisão. Não de Deus ou do tempo, mas de um pai que pensa que um isqueiro é brinquedo, só porque brinca com a própria saúde e fuma até o pulmão apodrecer. 

- Cala a boca. Você está certa. Cala a boca e vamos embora 

O céu ficou negro por um dia inteiro, depois voltou ao seu modo natural, sujeito ao clima e às estações. O parque ficou fechado por cerca de um mês devido ao acidente.

*

Eu procuro não proliferar esses tipos de pensamentos, mas assim como o fogo foi descoberto há milhares de anos, uma mínima chama de descrença aparece de súbito, surpreende o escuro e queima lenta dentro do corpo sóbrio. Essa chama tímida pode fazer tudo mudar.

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sexta-feira, 4 de maio de 2012

Angústia.

Encarando o Negativo. (Yhuri Cruz + Jackson Pollack de fundo)

Estava folheando alguns cadernos antigos de anotações e ilustrações e achei uns trechos de um livro chamado Angústia (não, não é o do Graciliano Ramos, que por acaso não li ainda, mas enfeita a estante com a capa rosa bebê). É uma coletânea de artigos de famosos teóricos sobre o conceito do sentimento sombrio, que preenche de vazio o grande espaço abstrato que possuímos dentro de nós. Pensando nisso, fiz a ilustração acima que se chama Encarando o Negativo*.

Aqui estão uns trechos:

"A angústia é o encontro com o nada. É se deparar com o abismo. É a necessidade de seguir em direção ao salto, imprevisível e inexplicável, mas a única saída do homem encontrar as possibilidades da existência. Não encontramos angústia no ser bruto, no ser sem espírito. A angústia é o encontro com o divino."  (KIERKEGAARD)

"A angústia 'corta' a palavra. Quando palavras sem nexo são ditas para cortar o silêncio, isso é a manifestação da presença do nada."
"Todas as organizações sociais não passam de formações defensivas contra a angústia." (HEIDEGGER)

"A angústia é um pré-sentimento. ela é o estranho, o exílio pré momento da revelação." (LACAN)

"A angústia é o fruto da consciência de responsabilidade diante as escolhas do mundo." (SARTRE)


* A ilustração é minha, mas o fundo abstrato é do famoso pintor, referência do expressionismo abstrato, Jackson Pollack.

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segunda-feira, 30 de abril de 2012

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Samsa.

Eu em fúria. (Ilustração de Yhuri Cruz: aquarela)

Um dia acordei como Gregor Samsa¹, metamorfoseado numa criatura inumana, irreconhecível. O espelho da parede se quebrou ao ver o que eu me tornara; o sol se recusava a iluminar-me, pois era indigno de sua luz; minha consciência se remexia entre mares em fúria; o planeta se revoltava lá fora com a minha presença em seu solo sagrado.

- Por quê? - questionei-me e ao mundo. - Agora que me tornei o que eu realmente sou!

¹ Personagem do conto A metamorfose, de Franz Kafka.

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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Medo.

Ilustração: Yhuri Cruz.
(Clique e veja em melhor resolução.)
O clima quente finalmente se ausentava do Rio de janeiro e o subúrbio acalmava suas esquinas lotadas de ambulantes vendedores d'água. A moça estava num ponto de ônibus do bairro de Olaria, e acima dela, somente um recente céu esfumaçado de cinza, pronto para desabar. Ao seu lado, um rapaz apertava sua mão com firmeza. Ambos esperavam a condução passar - Letícia ansiosa. A ansiedade se justificava na espera de sua avó, que a aguardava em casa para poder finalmente sair às compras. A moça, que dormiu na casa do namorado, havia perdido a hora de acordar devido à noite cansativa que havia passado. De qualquer forma, naquele momento, Letícia preferiria ter dispensado o prazer noturno e ter acordado na hora exata. Estava atrasada. "Merda", pensou Letícia ao despertar às 10 horas.

No ponto de ônibus, o rapaz balbuciou um "eu te amo", acompanhado de um sorriso preocupado. Cansava ver Letícia correr daquela forma - não era a primeira vez que a moça fugia de sua cama tão abruptamente. A moça pareceu não ter escutado; mirava o vazio, horizonte acima. "Onde está esse ônibus?", disse numa voz aflita. 

A chuva finalmente caía, depois de tanto ameaçar, e ambos se protegiam debaixo de uma marquise. Letícia acentuava uma frustração em sua face. Minutos depois o ônibus se aproximava - Letícia tensionou os músculos em reação. Intentou correr a frente até a condução, ainda distante, mas o rapaz a segurou pelo braço: "espera ele chegar mais perto, você quer se molhar?". A moça o beijou, largou-se e correu na chuva, acenando com o braço para que o ônibus parasse. Molhou-se. Subiu no ônibus e, através das janelas, acenou um tchau para o rapaz, enquanto ele gritava: "Volta logo!".

Letícia não estava mais ali, nem mente nem corpo. 

*

(Alô. Alô. Oi, amor, tudo bem? Tudo certo, chegou bem? Cheguei sim. Deixa eu te falar. O quê? Eu realmente odeio quando você vai embora desse jeito. Como assim? Porra Letícia, você acordou e nem tomou café, saiu correndo da minha casa como se estivesse fugindo. Desculpa, amor. Não deu tchau pra ninguém, minha mãe até comentou "ué, Letícia já foi?", é chato, porra. Desculpa, amor. Eu me pergunto se você é castigada pela sua família, se eles ameaçam ou te agridem. Não fala merda. Da onde vem esse medo todo? Não é medo. Hoje, você teve a infelicidade de se atrasar, mas isso é recorrente. Sua mãe ficou chateada? Minha mãe só acha estranho essa sua mania de sair correndo. Pede desculpas a ela. Pode deixar. Vou tentar melhorar isso, não sei o que acontece comigo. Nem eu. Mas não é medo. O que seria então? Não sei. Acho que é um instinto de auto-preservação, você não quer sofrer críticas pela nossa relação. Pode ser. Mas você sofre críticas pela nossa relação? De vez em quando, minha vó e minha mãe são retrógradas. Eu conheço as feras. Não tão bem quanto eu. Enfim, vou almoçar. Certo, bom almoço. Te amo. Te amo.).

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Monólogo: Óculos Escuros.

- Ah! Não fica assim. Tudo que veio, veio porque foi empurrado. Quem mandou ficar sempre no mesmo lugar? É de maior previsibilidade, oras! E quem empurra não vai arriscar errar o alvo, certo? Ninguém quer perder nesse mundo. Só não é atingido quem é o mais esperto. Que vem de mansinho, banhado de negro e coberto de máscaras. Porque, orabolas, quem é sincero, quem dá a cara ao tapeador, acaba ardido. Agora, quem anda de óculos escuros pode estar olhando para todos ou para lugar nenhum. Vou te comprar um Ray Ban vagaba para ver se te temem com mais fervor. Um de 10 reais serve. É só para esconder esse teu olhar sincero, de gente boa, de humildade e pouca ganância. Uma mancha preta no lugar dessas duas esferas e metade da questão foi resolvida, assim, num colocar. Mas se você quiser ser ainda mais temida, tipo, um príncipe maquiaveliano, é bom começar a ser um pouco mais esquizofrênica. Sim, isso mesmo, não seja harmônico em sua expressão. Os óculos vão disfarçar a verdade, mas o sorriso deve estar sempre ali, aberto, querendo engolir todas as alegrias do mundo. Vai! Vai! Abre essa bocarra para eu ver. Isso, isso. Um pouco mais sutil: ninguém gosta do Steven Tyler com aquela caçapa toda, né?

* Compra o óculos e o coloca. *

- Pronto, agora mal consigo te enxergar, quero dizer, seu botox social está quase impecável. Não consigo me decidir se isso no seu rosto é um sorriso de desdém ou de desprezo total. Que incrível! (...) Você não está me esnobando, né?


Blasé. (Ilustração: Yhuri Cruz.)
Clique e veja em alta resolução.
- Ufa! Você é muito boa nisso. Nasceu para ser atriz. Você não tinha noção da sua capacidade, do seu talento para ser uma indiferente! Aquelas grandes expressões sentimentais, aquela sua transparência intrínseca, aquele seu riso sincero e a tristeza em lágrimas... Graças a Deus, tudo sumiu. Aprenda uma coisa, minha pequena aprendiz: a verdade só deve estar exposta nos romances, nos livros e na arte; na vida, ela está sob uma grossa camada de pó de arroz. Aparência é Deus na Terra, e olha que eu nunca o vi. Ele deve usar óculos escuros, certamente.

*

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O Impulso do Gato.

Não é raro que não compreendamos algumas das nossas paixões. Em sua maioria, amamos e não percebemos; cuidamos e não entendemos o porquê do zelo. Algo impulsivo do ser humano, algum sentido improvável que faz com que miremos com outros olhos os que nos são especiais, ainda que não os vejamos nem mais belos nem mais feios. O mesmo acontece com objetos, que preenchem os quereres por simples existência, às vezes inúteis e imóveis. O ser humano é ser de apreciar, é de se apegar, de pegar pra si o que lhe cativa.
*
Os pais são déspotas dissimulados até que um dia o pequeno cresce, descobre a verdade e se torna subsistente de si mesmo.
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Thiago e Dona Juscelina (Ilustração: Yhuri Cruz) + "A Casa Branca", de Van Gogh.
(Clique para melhor resolução.) 

Thiago amava, mas desconhecia a razão. Vivia todos os anos, dias e semanas, como ser vazio e frio, afinal eram só dias, meros acúmulos de horas. Até que chegava janeiro, e sua feição mudava: acendia e iluminava todos os dentes. Um mistério que não entendia: cultivava tamanha paixão por um dia em especial dentro do ano. Seu aniversário era no dia 10 de janeiro, comemorado coincidentemente junto com o de seu pai, no entanto, ardia em seu peito jovem (19 anos) um apego crescente pelo dia 9 de janeiro. O dia precedente ao seu aniversário de nascimento lhe parecia tão mais familiar. Estranho, era o que sempre pensava. Mas daí o dia 9 lhe parecia revigorante e esquecia a estranheza. Para Thiago, estranho mesmo era o dia 10, de seu aniversário. Algo estava sempre fora de lugar, sorria os parabéns mas não percebia euforia em canto nenhum de si mesmo. Que esquisito...

Os parentes mais próximos nunca deram a devida atenção ao desconforto do jovem com o dia do próprio aniversário. Todo dia 10 de janeiro, sentados em rodinhas, com latas de cerveja no chão e canecas no punho, discutiam a visível prostração de Thiago nesse dia em específico. Sua mãe sempre dizia:

- Ontem ele estava tão bem, sorridente, enérgico... Mas todo dia 10 é assim. Acho que sente inveja do pai ou algo do tipo, por não ter uma festa só dele. Não sei dizer.

Especulações e gargalhadas rugiam sonoras das rodinhas de conversas. O jovem fingia não ouvir; fingia também abrir um sorriso mais convincente. Enquanto vivia os dias 9 de janeiro com alegria, rezava para que o dia seguinte passasse bem rapidamente, sem surpresas ou indagações, só varasse como qualquer dia normal do ano, o que não era.

- É seu aniversário, filho! Trate de aproveitá-lo! - dizia-lhe o pai.

*

Algum tempo se passara desde então. Thiago já completava mais de 40 anos, com mulher e filhos, uma família formada. Sua vó, dona Juscelina, já passava dos 90 anos com uma vitalidade admirável. Era com ela que o homem Thiago conversava sobre a vida e desabafava angústias de trabalho, mulher, amantes, entre as fofocas mais interessantes da família. Somente aos seus 34 anos de idade encontrou na Vó Juscelina uma correspondente de suas ideias. Já coberta por camadas e sobrecamadas de rugas, com cabelos finos e negros de tinta capilar, com pernas fortes e ligeiras e visão debilitada, a velha senhora, mãe de seu pai, parecia compreender alguns de seus pesares mais inconscientes, seus preconceitos e suas admirações.

Numa tarde de dezembro, perto da virada do ano, Thiago e dona Juscelina conversavam na varanda da casa da vovó.

- E chega janeiro novamente, né dona Juscelina? Eu amo esse mês, em especial. - disse Thiago, sorrindo ao final do comentário. 

- É, meu neto? Janeiro é o seu mês, afinal. Seu e de seu pai. - Dona Juscelina mirava um gatinho champanhe que pulava o portão da casa do vizinho de frente. - Agora que me deu na telha, rapazinho, o que farão nos seus aniversários? - perguntou. 

- Ah, vó, nem ligo pra isso. Todos os familiares sabem que não gosto do dia do meu aniversário. - respondeu-lhe emburrado. - Essa nossa família é uma coisa de louco. Nunca faltam motivos para zombar

Dona Juscelina deu uma gargalhada pausada e divertida. Enquanto isso, o gatinho do outro lado da rua já tinha escalado o muro e tentava alcançar uma janela. Ameaçava um grande salto, mas calculava a força do impulso. 

- Mas não é, vó? Já escutei cada coisa. Que tenho medo da morte, que tenho medo de envelhecer e esquecer, que tenho inveja do meu pai, que odeio reunir a família, que sou egoísta. Até já me falaram que meus filhos não teriam aniversários decentes, porque eu não deixaria, já que sou ranzinza. Onde já se viu tanta merda junta? De aniversário, só ganho comentários dispensáveis de presente. 

Mais uma gargalhada. E o gato se preparava. 

- Até hoje eu lembro o dia em que você nasceu, Thiago, no Hospital Santa Lúcia. Como chovia e trovejava. Mas óbvio que não era mau agouro, é que naquele verão choveu quase todos os dias mesmo. Era noite do dia 9, quase meia-noite, e você nasceu. Branquinho, mas coberto daquelas coisinhas nojentas. Uma linda criança. Agora esse rapagão. - Dona Juscelina lhe contava a história com os olhos fechados, como se isso ajudasse a velha senhora a relembrar da situação. 

- Vó, a senhora deve estar enganada. Eu não nasci no dia 9. De acordo com a certidão, eu nasci no dia 10. Meia-noite e uns pouquinhos. - Sabe quando algo está a ponto de se revelar e você fica ansioso e agitado? Thiago estava exatamente dessa forma.

O gatinho saltou. 

- Naquele dia, meu neto, depois que você nasceu ainda eram onze e trinta e pouco da noite. Ainda era dia 9. Mas o seu pai pediu ao doutor que ele atrasasse seu nascimento na certidão, para que vocês comemorassem juntos. Seria como um presente para ele. Por isso é que vocês comemoram todo dia 10. - respondeu-lhe dona Juscelina, com um sorriso de saudade. 

Câmera lenta. O gatinho, agora, jazia no ar de corpo arqueado, os pelos cor de champanhe dançavam com o forte impulso, os olhinhos claros e fumegantes do felino miravam o parapeito da janela, as garras afiadas já sentiam o destino ao qual se agarrariam. Do outro lado da rua, Thiago estava com uma expressão neutra. A razão lhe agitava o cérebro, mas o corpo permanecia imóvel. Todo aquele rancor tinha agora uma nitidez. Aquele dia não era o seu. Aquelas festas não eram suas. Aqueles parentes não comemoravam em sua homenagem, mas bebiam para seu pai. Pai, esse ser egoísta. Tinha vontade de lhe gritar e enforcar o pescoço até que pedisse desculpas. 

Mudança de foco. O gato tem um alerta instintivo. O impulso foi mais forte que o necessário. Se continuar nessa velocidade, não se deterá na janela, mas cairá no solo de dentro do quarto, podendo machucar-se seriamente. O felino se detém no ar, contorcendo-se e impondo ao corpo uma queda. Ploft. O gatinho champanhe está no chão novamente. Thiago e dona Juscelina avistaram a queda do gato, surpresos.

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No dia seguinte, 29 de dezembro, Thiago dirigiu sua vó Juscelina e seu pai a um cartório da cidade para servirem de testemunhas do erro que foi cometido ao se trocar o dia 9 de janeiro pelo dia 10 de janeiro como data do seu nascimento. O juiz, ouvindo a declaração do pai de Thiago e sua vó, declarou permitida a retificação do registro civil. 

*
O primeiro aniversário de Thiago aconteceu aos 44 anos de idade.

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O Impulso do Gato (Ilustração: Yhuri Cruz) + Pintura de Van Gogh com Motion Blur.
(Clique para melhor resolução.)


domingo, 8 de janeiro de 2012

Soar.

Soar. (Ilustração: Yhuri Cruz)

A frequência acelerou. E das batidas veio o som:

- É que tudo que eu sentia antes tinha tom de cinza. Chovia dentro de mim. E as gotas e as nuvens e o frio, me faziam querer você. Amarelo. Agora tudo é amarelo. É muito ouro dentro de mim. Esse dourado que me bronzeia por dentro. E já não preciso de você pelos abraços que me curavam o frio. Muito mais. Você é muito mais que a chuva. Eu te quero pelo arrepio que a gente sente quando se assobia no ouvido. Você é a dona do meu ouro. Morena, isso é seu. O meu amor é luz que me faz ver o quanto você é nítida. O quanto seus olhos chorosos são profundos. A chuva finalmente passou e te quero pelo carinho sutil que seus dedos fazem na minha barriga. E te quero pelas tardes de amor que o mundo nunca girou para ver. E te quero pela voz precisa que falta aos pássaros da manhã. E te quero pelos sorrisos que mentem a incerteza de um futuro! Eu tenho ouro dentro de mim. Que me faz quente, ainda mais! Eu te amo só por amar você. Não há mais frio. Eu sou e soo quente por você. Morena.

E então a percussão estabilizou.

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domingo, 1 de janeiro de 2012

Domingo de Ano Novo.

Mas é que hoje não é um domingo qualquer e ao mesmo tempo é o domingo que todos conhecem e odeiam, cagado e cuspido, à imagem e semelhança do Domingo-Pai todo poderoso. Os fogos queimaram nos céus todas as estrelas e nada se escutava além dos abafados gritos de alegria. Mas pra que tudo isso. Se o desfecho desse show é esse bendito domingo a mais, chuvoso, repleto de um tédio ainda mais concreto do que o corriqueiro.

É como se tivesse uma promessa de um ótimo primeiro dia do ano incluída no pacote da virada. Mas aí acontece num domingo e ploft.. é um tédio sem fim como todos os domingos. A única diferença é que tem rabanada.

Hei de escrever uma carta a Presidenta e requisitá-la, para que em todos os anos de virada sábado-domingo, haja uma reordenação para uma virada domingo-segunda. Porque, convenhamos, é como todo fim de semana normal: sábado de festa, domingo de internet.

Para o ano de 2012, desejam-se ideias (em todas as áreas da vida), uma vida social dominical mais animada, e um tanto mais de visitantes para o blog. Feliz ano novo a todos!
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