domingo, 10 de junho de 2012

Faíscas.

Faísca. (Ilustração: Yhuri Cruz)
Um homem e uma mulher deitados na grama de um parque conversam enquanto olham para o céu. O azul lá em cima perdia lugar para algumas nuvens cinzas, finas e possivelmente inofensivas. O homem começou a falar:

- Eu realmente não sei como nos conhecemos, você lembra? Quando vi, já éramos amores. E agora, estamos nesse parque. O tempo cega os olhos. Será que perdemos de vista tudo que explica nossa jornada?

- Não seja exagerado. Eu sei exatamente como cheguei aqui, neste momento, neste parque, neste domingo. Eu conheço todos os sacrifícios que fiz para ter esse domingo e para ter você.

- Não estou sendo exagerado. Claro que sei como tudo aconteceu. Só que nada aconteceu por que você quis. Entende? O tempo e o acaso são quem decidem. E ao mesmo tempo, quando damos conta disso, percebemos que não temos controle das nossas próprias vidas.

- (...). 


A mulher ficou calada por minutos inteiros. O céu parecia um quadro de fundo azul pintado com delicadeza de tons de branco e cinza. Cada vez mais a tinta azul ia dando espaço a um relevo enevoado, misturado a tons pastéis rosa, amarelo, e lilás. O homem sentiu um incômodo e perguntou:

- Tudo bem?

- Só me pergunto se toda nossa relação aconteceu por culpa do tempo e do acaso ou se você possui uma parcela dessa decisão.

- Não seja boba. Não falo da gente, mas da vida.

- E qual a diferença? Não sou boba. Você é um homem que não tem controle sobre seus próprios atos? Isso me soa tão covarde. Você não pode simplesmente culpar o acaso de você ter chegado aqui, neste parque. Isso torna toda a humanidade gado de Deus ou seja lá o que for. O ser humano não possui autonomia?

Um silêncio incômodo deitou entre o casal e fez soprar um vento quente. De repente um clarão se fez no horizonte, acompanhado de um som estrondante que fez o casal levantar-se. O céu por segundos tornou-se vermelho e a pintura uma vez de tons frios, tornou-se latina e quente. Uma fumaça negra subia por trás de um bosque do parque e o casal se perguntava o que havia explodido.

De dentro do bosque um homem vinha correndo com duas crianças. Carregava-as pelos braços, penduradas, flutuando violentamente pelo ar. Estavam visivelmente machucadas e, pelo balançar desumano de seus pés, estavam mortas. Vinha gritando:

- Foi só uma faísca, eu juro, foi só uma faísca!

O casal descobriu que um isqueiro nas mãos de uma das crianças havia feito explodir algum duto de gás perto do parque. A mulher chorava ao ver os pequenos inofensivos mortos e perguntou ao seu companheiro:

- Isso soa como acaso para você? Isso pra mim é uma decisão. Não de Deus ou do tempo, mas de um pai que pensa que um isqueiro é brinquedo, só porque brinca com a própria saúde e fuma até o pulmão apodrecer. 

- Cala a boca. Você está certa. Cala a boca e vamos embora 

O céu ficou negro por um dia inteiro, depois voltou ao seu modo natural, sujeito ao clima e às estações. O parque ficou fechado por cerca de um mês devido ao acidente.

*

Eu procuro não proliferar esses tipos de pensamentos, mas assim como o fogo foi descoberto há milhares de anos, uma mínima chama de descrença aparece de súbito, surpreende o escuro e queima lenta dentro do corpo sóbrio. Essa chama tímida pode fazer tudo mudar.

*

Nenhum comentário:

Postar um comentário