sábado, 26 de novembro de 2011

Retrato vazado.

Retrato Vazado. (Ilustração: Yhuri Cruz)
 
Durante as quatro principais horas que compõem as manhãs, exceto naquelas de chuva, são libertos os indivíduos de sua mansão branca e gélida. No pátio, eles tem o direito de aproveitarem do céu e de pisar na grama com toda a força. Uns aqui e outros ali. São pequenos pirocópteros fora de rota.

- Eu bem te desenhei num outro dia.
- Sério? Cadê? Você está com ele aí?
- Com o desenho? Estou sim. (Pega o caderno e mostra o desenho).

- (...)
- Então, gostou?
- Gostei sim. Bastante. É que eu estou tão bonita que nem me reconheço.
- Mas todos reconheceram você assim que puseram os olhos nos seus traços. Eu empresto o caderno, as pessoas passam as páginas devagar, às vezes nem prestam a devida atenção (não que eu ligue), e chegando nessa aí falam logo: não é a Cecília? E eu sempre rio e confirmo que é você.

- (..) mas o meu nome nem é Cecília.
- Como assim? Eu sempre pensei que você se chamasse Cecília.
- Não.
- Caramba, que vergonha. Desculpa, mas, então, qual é o seu nome?
- Meu nome é Marta.
- Nossa, Marta, me desculpa. Me sinto tão envergonhado. (Pega o caderno de volta).

Do outro lado do pátio, alguém grita: Cecília, vem aqui!

- Vivem confundindo o meu nome. Me sinto triste porque penso que não sou uma pessoa que deixa sua marca no mundo, sabe? A primeira coisa que você faz quando encontra um novo alguém é se apresentar, é falar quem você é. É nessa hora, quando você fala o seu nome, que é dado o primeiro passo da intimidade. O nome é a nossa identidade nesse mundo. Mas vivem me confundindo, eu fico realmente triste. Eu sinto falta da intimidade.
- Não fica assim. As pessoas esquecem porque... porque o mundo é muito complicado.

- É verdade. Muito complicado. Outro dia eu juro que minha mãe me perguntou: 'você ama seu irmão?' E eu fiquei muda, sem saber o que falar. Meu irmão já morreu. Por que aquela conversa naquele momento, sabe? O mundo é mesmo muito complexo. 
- Nossa, seu irmão morreu mesmo? Meus pêsames.
- Não tem problema, foi no parto.

O homem de roupas claras que gritara agora há pouco, repete: Vem, Cecília! Vem!

- (...).
- Não se incomode tanto. Vai lá e fale que seu nome é Marta, oras! Você tem que fazer com que as pessoas pensem que essa menina linda que eu desenhei é a Marta e não a Cecília!
- Mas... Essa menina que você desenhou sou eu, certo? Ainda que seja muito bonita (eu nem sou tanto), mas ela sou eu, né? 
- Claro que é você, boba! E você é linda. 
- Mas se sou eu, então não é Marta.
- Como assim? "(...) não é Marta"?
- Desenhista, meu nome é Alice. Não é Marta..


- Alice? Seu nome não é Marta?
- Não.
- Nem Cecília?
- Meu nome é Alice Bragança Santos.

O homem de branco chegou apressado, carregava uma pesada respiração nos pulmões e parecia ter feito algum esforço físico.

- Cecília, sua mãe e seu irmão estão aí para te ver. Acabaram de chegar. Vamos vê-los?

O desenhista encarou o homem ofegante e Alice (ou Marta ou Cecília ou Amanda?). Subitamente, a mulher começava a derramar lágrimas e mais lágrimas. Sua expressão era de dor e pena. Ela não existia para qualquer ser humano. Era uma pessoa sem nome. Chamava-se ______. Aproximou-se rapidamente do desenhista e o abraçou.

- Ninguém sabe quem eu sou, desenhista. Ninguém.
- Não chore. Sua mãe e seu irmão chegaram. Vá vê-los, não os deixe esperando.
- É, é. Mas meu irmão já morreu. O homem deve ter se confundido.
- Pode ser, mas vai lá, vai. Eu te espero aqui para conversarmos e para que possa te desenhar de novo. 

- Certo - disse, com um sorriso recém-nascido. Mas você sabe meu nome, certo, desenhista?
- Quem precisa de nome, mulher, quando se é tão incrivelmente inspiradora para as artes plásticas! Esqueça a literatura!

A mulher o encarou por alguns longos segundos, seu olhos penetravam nas dúvidas do desenhista que, por sua vez, tinha medo do que responderia à mulher, caso viesse a pergunta X.

- Quem eu sou, desenhista? Me diz, por favor. Qual o meu nome? Qual é a minha identidade? Eu quero ser sua íntima. Como o mundo pode me acolher? Quem poderá me achar se eu me perder? Quem sou eu, desenhista? 
- (...). 
*

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