quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Camacho.

O desocupado é vítima de seu estado de espírito permanente e tende a tomar seu tempo barato com atividades igualmente baratas e pífias.

Camacho estava em seu apartamento, num dia qualquer, comum, daqueles que você entra no elevador e se depara com um vizinho que adora te analisar os pés e os calçados, tentando adivinhar sua situação financeira, ou daqueles em que você faz sinal para um ônibus e o motorista não te enxerga, pois a admiração da loira que não consegue achar as moedas da passagem o exige muito mais atenção.

Neste dia, como na maioria, o desocupado acorda, sai da cama sem olhar o relógio, e almoça o café da manhã, sentado à mesa da cozinha por cerca de três quartos de hora. Daí tem certas ideias que surgem frequentemente na sua massa cinzenta devido a constante observação reflexiva do seu espaço de conforto, os 300 m² de sua propriedade. Na cozinha, por exemplo, nesse dia irrelevante de janeiro, ele estava croqueando uma torrada quando olhou para o paninho xadrez que protegia os farelos e respingos de café de ricochetarem na mesa em que comia, evitando a limpeza posterior. Ele segurava a torrada com a mão esquerda, erguida e perto da boca, e com o dedo indicador da mão direita seguia os riscos das linhas retas do tecido xadrez vermelho e verde. Pensou em jogar xadrez mas perdeu o racicínio com o som dos próprios dentes.

Quando já era fim de tarde, depois de admirar os narizes de suas atrizes favoritas, o desocupado lembrou-se do que comeu no café da manhã e, num flash (!), o paninho xadrez o veio à mente. Graças ao homónimo, foi se aventurar em jogatinas de xadrez online.


Camacho fez um login de nome "Camachinho" e escreveu como frase de definição: "Nunca joguei xadrez, mas não sou um peão qualquer". Iniciou partidas com três meninas (alguém pode afirmar?) até encontrar a "Lucy Vargas", que tinha como definição "Só descobrirá minha estratégia na última jogada, quando não houver mais alternativas". O site proporcionava a opção de conversar simultaneamente com o seu adversário durante as partidas.

Daí que "Lucy Vargas" vivia bem ao norte do Amazonas, na fronteira com a Colômbia. Sofria ataques de pânico por conviver frequentemente pela opressão de alguns paramilitares das Forças Revolucionárias, e tinha um cachorro chamado bambu, que era alvo de súbitos momentos de depressão. Foi paixão que arrebatou seus corações. Deu em conversas na madrugada, trocas de mensagens por celular, confusão com fusos horários, confissões emocionadas, cartas diversas que viajaram em todos os meios de transportes precários brasileiros, promessas verdadeiras, saudades fumegantes, mais promessas, brigas da madrugada, felizes aniversários sem abraço, choros descrentes, medo do não futuro, promessas, caixas do carteiro, descrença em ascensão, paixões não consumidas, mais promessas, um último telefonema, mais um telefonema, promessas, traição dele, uma última mensagem, um recorrente ‘impossível’, a última promessa e as contas de telefone no fim de um ano de sentimento.


A desocupação de Camacho era reconhecida cientificamente por alguns analistas como patológica e conveniente. Seu estado permanente, no entanto, sofreu reações adversas durante aproximadamente quatro semanas e meia, após sua separação de Lucy Vargas, nas quais as noites duravam menos, o relógio servia seu propósito de existir e  algumas atividades que exigiam certa dedicação foram incorporadas à sua agenda. Após esse período de recaída, o desocupado ia sempre tomar café da manhã na padaria. Às 15h da tarde. Voltara à rotina. 

E é possível que "Lucy Vargas" tenha se agarrado a bambu nos surtos de depressão, mas nisso Camacho prefere não pensar.
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