domingo, 4 de setembro de 2011

Sem (cor)respondência.

Clarice, às vezes te odeio. (Ilustração: Yhuri Cruz)
No momento subsequente à catástrofe, quando não há no horizonte possibilidades de que a situação se torne ainda mais insuportável, eu perco a compostura, não me importando com vergonhas ou arrependimentos. Eu enfio o pé na jaca sem o menor pesar, ainda que pese. Eu corro pelado, grito seu nome pela varanda para que todos escutem, entupo meu fígado de álcool, permito-me dançar até o cair do dia. Envio mensagens de súplica, de luto, de desespero. Ligo às quatro da manhã só para ouvir sua voz do quinto sono. Esbarro levemente nos seus seios para sentir o que talvez nunca possa admirar de fato. Deito minha cabeça sobre seus ombros, de súbito, para sentir o cheiro dos seus cabelos negros, fazendo com que você fique desorientada com minha importuna insistência. E, reflexo nos seus lindos olhos misteriosos, encaro seu rosto enigmático, sem vergonha, te fazendo corar pela surpresa e pela dúvida vergonhosa: você ainda gosta de mim?

Como amigos que sempre fomos, você não me (cor)respondeu.

***
A Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, localizada no largo da Cinelândia, próxima ao Theatro Municipal,  foi concebida, no início do século XX, pelo General Sousa Aguiar, o qual seguiu o estilo eclético, composto por diversos elementos do neoclassicismo, para o conceito de sua arquitetura. Nós adentramos seu interior. Fui apto a identificar as janelas em estilo romano, retangulares com arcos na parte superior, e você alcançou o sucesso de encontrar raridades de Clarice nas estantes catifundas de fichas do acervo. O dom rege nossas vidas. Eu bem lembro o que você sussurrou para si própria naquele instante de reflexão. Nenhum outro poderia distinguir seus sussurros como eu o faço, o costume de olhar seus lábios me transformou no cientista de sua boca. 

- Quero viver de amor e de palavras... - sua boca formou o concreto inaudível.

Esse seu desejo não me saiu do pensamento, como estilhaços não podem ser retirados sem muita perícia de certos orgãos vitais do corpo humano. Estilhaços de guerra. Um dia ouvi alguém dizer que a guerra nunca é originalmente do soldado que a combate, mas o soldado, no meio dos tiros e do caos, luta a guerra como se ele a tivesse originado.  O medo é o maior legitimador da guerra? É estranho, pois estou em guerra mas já não sinto receio de morrer. Eu vou morrer, eu vou morrer. Eu vou tentar. Eu vou morrer. Podem me chamar de guerreiro sem esperança. Eu vou morrer, mas eu vou tentar.

Então, você quer viver de amor e palavras. Pensei em minha capacidade de te entregar amor, mas não qualquer amor, não amor de supermercado, amor fabricado pelo fordismo, se pudesse te daria amor orgânico, direto da terra para sua mesa de casa, servido de manhã, a luz do sol nos seus olhos e meu amor na sua boca.Você seria agraciada por amor manufaturado. Meu amor.

Quanto às palavras, já não sei. Você as domina com perícia. Sua escrita é sincera, repleta de significados e muito bem amarrada. Você maneja as frases como poucos grandes escritores que já tive oportunidade de ler. Devo ser uma simples palavra para você, daquelas que são fáceis de identificar e que usamos frequentemente, todos os dias, em qualquer oração. Porque você me domina tão facilmente!

Mas sei qual palavra sou, para você. Não é uma palavra feia, pelo contrário, é linda, e até fico feliz de receber tal alcunha como definição. Minha palavra: amigo. Sua palavra: frustração.

***
Era tarde nublada e conversávamos em uma praça cheia de mesas de concreto, às vezes pichadas, às vezes puras de cinza. Os senhores jogavam dama, alguns bebiam cerveja e outros só ficavam admirando as jovens que passavam de vez em quando. Eu te confessei que você era uma mulher complexa demais para qualquer homem entender. Provavelmente, você seria o tipo de esposa que entende completamente o marido, mas não recebe metade da compreensão que dá. E você disse mais uma verdade.

- A raiva te deixa cego e você não pensa no que diz. Você me machuca como ninguém porque, ainda que não me entenda, sabe como me machucar.

Eu só tive a opção de calar-me e fitá-la diretamente em seus olhos. Os minutos foram enchendo a ampuleta, assim como um certo desconcerto originado pelas mágoas que cada um desferiu contra o outro. Mágoas não intencionadas machucam de qualquer forma.

- Não espere sorrisos de mim. Só a ironia dos derrotados.
- Eu só espero você de você mesmo.

***
Nietzsche abatido. (Ilustração: Yhuri Cruz)
O soldado, ainda que ferido por estilhaços que perfuraram sua derme e se fixaram em seu músculo pulsante, sobreviveu. Nietzsche, uma vez, já dissera: "Da Escola de Guerra da Vida - o que não me mata torna-me mais forte". E Deus não morreu.

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